Gestão

COMO LIDAR COM O “ESCOLA SEM PARTIDO”

PARA SABER MAIS

 

m outubro de 2016, a diretora Ana Elisa Siqueira, da EMEF Desembargador Amorim Lima, localizada na zona oeste de São Paulo, recebeu um ofício assinado por um vereador pedindo explicações sobre a Semana de Gênero, evento organizado pela escola e que se iniciaria dentro de algumas horas. O documento determinava ainda a suspensão da atividade, que previa palestras, dinâmicas e debates sobre machismo, desigualdade de gênero, violência contra a mulher, entre outros temas.

 

A diretora não se intimidou. Deu sequência à Semana, pois sabia que se tratava de uma interferência indevida do vereador. Sabia também que, ao promover o evento, a escola estava – e está – amparada na legislação educacional e tinha o apoio de toda a comunidade escolar, com quem foi previamente discutida a organização do evento.

No início deste mês de abril, a atuação de um outro vereador em São Paulo gerou um conflito com o secretário municipal de Educação. O parlamentar foi a uma escola municipal na zona sul da capital paulista para verificar, segundo suas palavras, se estava havendo “doutrinação no conteúdo que está sendo dado na sala de aula”. O secretário reagiu publicamente, vendo no gesto do vereador uma tentativa de intimidar professores e um abuso de função. Após o episódio, vários educadores saíram publicamente em defesa do titular da pasta de Educação.

Educação neutra?

As ações dos vereadores não representam casos isolados. Inserem-se em um cenário mais amplo, de polarização ideológica, ascensão conservadora e intolerância, que no campo educacional tem como um de seus principais expoentes o movimento “Escola sem Partido”.

O movimento propõe, entre outras medidas, a afixação de um cartaz em todas as salas de aula do Ensino Fundamental e Médio e nas salas dos professores no qual são descritos os “deveres dos professores”. A principal motivação da iniciativa é “inibir a prática da doutrinação política e ideológica em sala de aula e a usurpação do direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos”.

Para institucionalização da medida, o movimento disponibiliza em seu site anteprojetos de lei de âmbito estadual e municipal e orienta simpatizantes da proposta a se mobilizarem pela sua discussão e aprovação nas casas legislativas. Na esfera federal, tramita no Congresso o PL 193/2016, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES), que determina a inserção do “Programa Escola sem Partido” entre as diretrizes e bases da educação nacional. O texto prevê, em seu artigo 8º., a disponibilização de um “canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta lei, assegurado o anonimato”.

O “Escola sem Partido” também disponibiliza um modelo de notificação extrajudicial a ser enviada à escola para pais que quiserem se prevenir “contra o abuso da liberdade de ensinar por parte do professor”. Trata-se do registro de uma queixa em cartório sem qualquer implicação legal imediata e que visa apenas intimidar o docente.

 

Debate

A proposta vem suscitando amplos debates entre pais e educadores. Entre os profissionais da área da Educação, um dos principais pontos de discussão está no papel da escola na formação de cidadãos críticos, que saibam lidar com as diferenças e valorizar a diversidade. Para isso, a sala de aula deve ser um espaço caracterizado pela pluralidade de ideias, no qual os estudantes tenham a oportunidade de serem expostos a diferentes pontos de vista, correntes, tendências, crenças e ideologias presentes na sociedade brasileira. Causa ainda preocupação a suposta neutralidade exigida do professor, quando a sua prática, assim como a de qualquer profissional, se dá a partir de uma visão de mundo.

As ideias do  “Escola sem Partido” não dialogam com a experiência concreta das melhores experiências em Educação no mundo. Além disso, na literatura não há referência a qualquer base científica consistente e evidência empírica relevante que as sustentem.

Embora o projeto ainda esteja em tramitação no Congresso, o movimento vem tolhendo nas escolas o debate sobre temas fundamentais para construção de uma sociedade mais justa, democrática e solidária, como equidade de gênero, combate à intolerância religiosa e à homofobia. Até o momento da publicação deste boletim, a única lei aprovada no país que encampava as propostas do “Escola Sem Partido”, em Alagoas havia sido considerada ilegal pelo ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.

Nesse contexto, é fundamental que o gestor esteja consciente da importância dessas discussões no espaço escolar, e esteja ciente de que não há nenhuma restrição legal para que esses temas sejam abordados na escola. O combate às desigualdades presentes na sociedade e também na escola diz respeito à garantia do direito à educação, na medida em que procura impedir que os alunos sejam alvos de discriminação e violência e abandonem os estudos. (Confira as edições 2 e 11 do Aprendizagem em Foco, que tratam, respectivamente, das desigualdades raciais na educação e do preconceito vivenciado pela população LGBT no ambiente escolar).

Papel do gestor

Frente a isso, a informação é uma das principais aliadas de uma gestão escolar comprometida com o aprendizado e a permanência de todos e cada um dos estudantes. Os debates sobre gênero, raça, orientação sexual podem e devem estar presentes nas salas de aula e estão amparados na legislação. Dentre os marcos legais, podemos citar o artigo 3º da Constituição Brasileira (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996), as Diretrizes Nacionais de Educação e Diversidade e as Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (art. 16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação. O artigo 2º do Plano Nacional de Educação também prevê a implementação de programas e políticas educacionais destinadas a combater “todas as formas de discriminação” existentes nas escolas. O Brasil também é signatário de compromissos internacionais que dão ainda mais embasamento pedagógico e legal para o trabalho dessas temáticas.

Em artigo publicado no jornal O Globo em 13/10/2016, Flávia Piovesan, secretária especial de Direitos Humanos, Jaime Nadal Roig, do Fundo de População das Nações Unidas, Lucien Muñoz, representante no Brasil da Unesco e Nadine Gasman, da ONU Mulheres Brasil, afirmam que “o programa Escola sem Partido viola frontalmente a Constituição e os tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro”.

Foto: Apu Gomes/Folhapress

Assista ao depoimento da gestora Graziely Ameixa, da E.E. Marinete de Souza Lira, em Serra (ES), que trabalhou os temas de gênero e orientação sexual na escola a partir de um projeto de roda de leitura

Diálogo com as famílias

A presunção de que seja possível resolver supostos problemas de doutrinação ideológica nas escolas por meio de uma lei é um dos aspectos mais criticados por educadores na proposta do “Escola Sem Partido”. Por outro lado, também é papel do gestor estabelecer o diálogo com pais ou responsáveis que se oponham à abordagem dessas temáticas pelos professores. Eles têm todo o direito de procurar a direção e expor seus pontos de vista. É fundamental buscar compreender o que está por trás da resistência da família. É possível que uma conversa franca esclareça uma visão equivocada que os pais ou responsáveis eventualmente possam ter do teor e da pertinência desses debates em sala de aula. Um segundo passo é salientar o papel da escola e o seu foco na aprendizagem e na formação integral de todos os estudantes, o que contempla tanto o ensino dos conteúdos curriculares como o desenvolvimento das capacidades crítica, de reflexão e análise sobre os contextos político e socioeconômico.

Não só no caso dos debates sobre os temas da diversidade sexual e racial, mas todo o projeto político-pedagógico e o plano de ação da escola – prevendo as ações que serão realizadas no ano letivo – devem ser objeto de discussão da comunidade escolar e caracterizam uma gestão efetivamente democrática. O melhor caminho para resolução dos conflitos na escola é sempre pelo diálogo, construindo relações de confiança e de respeito entre todos.

Nº 25 - abr.2017

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Aprendizagem em Foco é uma publicação quinzenal produzida pelo Instituto Unibanco. Tem como objetivo adensar as discussões sobre o contexto educacional brasileiro, a partir de pesquisas, estudos e experiências nacionais e internacionais.

 

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