O desafio da integração entre o médio e o técnico

O DESAFIO DA INTEGRAÇÃO ENTRE O MÉDIO E O TÉCNICO

Boletim 69 - Outubro 2021

Escolas e redes de ensino do Brasil inteiro estão diante do desafio de integrar a educação profissional à vida escolar. A partir do ano que vem, terá início a implementação da reforma do Ensino Médio, que mudará a organização dos currículos e ampliará a carga horária. Além de uma formação geral alinhada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os alunos passarão a escolher entre diferentes itinerários formativos, um deles de formação técnica e profissional.

A ampliação da educação profissional técnica já fazia parte dos objetivos do Plano Nacional de Educação (PNE), que, em sua meta 11, estipulou triplicar o número de matrículas no ensino técnico de nível médio em dez anos. De acordo com o Observatório do PNE, isso significaria chegar a 5,2 milhões de estudantes em 2024. Considerando que havia 1,9 milhão de matriculados nessa modalidade em 2020 (quase o mesmo número verificado em 2014), esta é uma meta que dificilmente será alcançada.

Como a reforma permite que o itinerário técnico e profissional esteja incluído na nova carga horária regular mínima (3.000 horas totais, o que dá uma média de 5 horas diárias em 600 dias letivos), esta pode ser uma oportunidade de ampliar significativamente a oferta numa modalidade em que o Brasil tem cobertura muito baixa na comparação com outros países, como demonstram as estatísticas do relatório Education at a Glance (Um Olhar sobre a Educação), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Qualidade

Analisando a qualidade do ensino hoje oferecido em escolas técnicas, os dados mais recentes do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) mostram que estudantes de escolas que oferecem ensino técnico integrado tiraram, em média, notas mais altas do que os do médio tradicional em 2019: em português, 306,7 e 278,4 respectivamente; em matemática, 311,1 e 277,3. Há uma série de fatores que explicam isso, entre eles o fato de a demanda superior à oferta possibilitar uma maior seletividade no perfil dos alunos.

No contexto específico da reforma do ensino médio, o grande desafio é fazer com que o itinerário proposto dentro da carga horária mínima não seja uma opção precária, que prejudique o desempenho acadêmico dos alunos que optarem por esta trajetória ou dificulte – no caso dos estudantes que quiserem continuar estudando – o ingresso no ensino superior.

No Ceará, estado brasileiro com maior percentual de escolas profissionalizantes integradas ao ensino médio (18% ante 5% de média nacional), a expansão levará em conta a realidade econômica e as necessidades de formação de mão de obra de cada região, entre outros fatores. É o que afirma o coordenador estadual da Educação Profissional, Rodolfo Sena da Penha. Na rede cearense, a exemplo do que ocorre no Brasil, os alunos das escolas técnicas têm desempenho acadêmico superior ao restante da rede.

Penha atribui o êxito da rede profissional cearense ao status de prioridade que a educação tem no estado – o ensino técnico integrado começou em 2008. “Não é uma modalidade barata, mas foi uma decisão política”, diz ele. O currículo das atuais 123 escolas técnicas é dividido em três eixos: formação geral, ensino técnico e parte diversificada (empreendedorismo, horário de estudo, projeto de vida, redação).

“A gente prepara o aluno para a vida: se ele quiser ir para o ensino superior, vai. Se quiser trilhar a carreira técnica, estará apto a conseguir um bom emprego; se quiser ser empreendedor, poderá seguir sua veia empreendedora.”

Rodolfo Sena da Penha

coordenador estadual da Educação Profissional

Outro estado que já vinha investindo na ampliação do ensino profissionalizante integrado ao médio é o Piauí. Ellen Gera, secretário da Educação do estado, afirmou em debate realizado pela Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação), em 9 de setembro, que nem todos os municípios piauienses contavam com escolas de ensino médio no ano 2000. Atualmente, segundo ele, todos os municípios piauienses já contam com algum formato de ensino profissionalizante na rede pública. Tamanha experiência, enfatizou o secretário, será extremamente útil na adoção do novo itinerário formativo da educação profissional. “Estamos justamente neste momento definindo essa arquitetura”, contou ele. Segundo ele, a rede estadual do Piauí é formada por 653 escolas, das quais 72 são centros de educação profissional. Uma vez que as escolas técnicas exigem infraestrutura diferenciada, a ampliação tende a ser gradual.

No mesmo debate, a superintendente do Itaú Educação e Trabalho, Ana Inoue, também defendeu a expansão do ensino técnico integrada ao ensino médio. Ela encara a educação profissional na perspectiva de um direito da juventude, lembrando que a própria Constituição estabelece que a educação visa não somente ao desenvolvimento pessoal e à formação para o exercício da cidadania, mas também à qualificação para o mundo do trabalho. Inoue lembrou que cerca de oito em cada dez jovens, na faixa de 18 a 24 anos, não ingressam no ensino superior:

“Tem que olhar também para os 80% que estão fora da universidade. Qual a política de inclusão produtiva e de continuidade dos estudos [para quem não vai para o ensino superior]?”.

Ana Inoue

superintendente do Itaú Educação e Trabalho

Ela afirmou também que a educação profissional, neste século 21, cumpre papel bem diferente do que ocorria no século 20, quando os cursos profissionalizantes funcionavam como uma espécie de caminho sem saída, isto é, quem obtinha esse tipo de formação deveria trabalhar o resto da vida em determinado tipo de emprego. Agora, destacou ela, a educação profissional deve ser encarada como uma etapa dentro de um processo de formação constante ao longo da vida.

CRÍTICAS

A integração do ensino profissionalizante ao médio dentro do contexto da reforma do Ensino Médio é visto como uma oportunidade por alguns, mas também com preocupação por outros especialistas. A professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) Ana Paula Corti argumentou, entre outras críticas, no webinário da Jeduca, que há falta de infraestrutura nas redes estaduais. Ela mencionou também o risco de uma opção precária, em que o itinerário formativo da educação profissional dê lugar a cursos de curta duração com baixo nível de empregabilidade. Lamentou também que a implementação vá se dar em meio à pandemia de Covid-19, o que prejudicará, em sua visão, o maior envolvimento das comunidades escolares.

Garantir que os alunos tenham voz nas decisões relativas a mudanças no Ensino Médio é uma das bandeiras da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). A presidente da Ubes, Rozana Barroso, diz que a entidade prepara nota técnica sobre o tema, para ser entregue às secretarias estaduais da Educação. “Não pode haver mudança na escola pública sem diálogo com os maiores interessados, que são os estudantes”, diz ela.

“Não se pode falar de educação para os estudantes, mas com os estudantes.”

Rozana Barroso

presidente da Ubes

Rozana concluiu um curso técnico de análises clínicas e pretende ingressar na faculdade de biomedicina. Com base na sua experiência, ela afirma: “A formação geral e a formação para o mercado de trabalho não são coisas diferentes. É importante entender o papel da educação para o desenvolvimento do nosso país. Há três coisas que precisam andar juntas: desenvolvimento tecnológico, econômico e social.”

Pesquisa realizada em julho, na rede pública de todas as regiões do país, revelou elevado grau de desconhecimento dos jovens sobre o ensino técnico: 77% dos entrevistados disseram ter pouco ou nenhum conhecimento sobre o ensino técnico. Por outro lado, 69% afirmaram que seria alta ou muito alta a possibilidade de optarem por essa modalidade, caso fosse possível conciliar o curso técnico com o ensino regular, como ocorre no ensino técnico integrado. O levantamento foi realizado pela empresa social Plano CDE, sob encomenda do Itaú Educação e Trabalho e da Fundação Roberto Marinho. Foram ouvidos mil alunos do 9º ano do ensino fundamental e do 1º ano do ensino médio.

A integração do ensino profissionalizante com o médio é uma tendência mundial, de acordo com o mais recente relatório Education at a Glance, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. “Nos últimos anos, os países aumentaram a diversidade de seus programas de ensino médio. (…) Os currículos evoluíram gradualmente da separação entre programas gerais e profissionalizantes para a oferta de programas mais abrangentes, que incluem os dois tipos de aprendizagem, tornando mais flexíveis os caminhos que levam à educação superior ou ao mercado de trabalho”, diz trecho do relatório, em tradução livre.

A experiência de algumas redes estaduais brasileiras mostra que é possível, em nosso contexto, oferecer uma opção de qualidade aos jovens. Mas os desafios são grandes, e as críticas precisam também serem consideradas no caminho da implementação eficaz de uma política pública que busca ampliar – e não diminuir – possibilidades aos jovens.

Saiba mais:

Aprendizagem em Foco é uma publicação quinzenal produzida pelo Instituto Unibanco.

Tem como objetivo adensar as discussões sobre o contexto educacional brasileiro, a partir de pesquisas, estudos e experiências nacionais e internacionais.

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