Nacional e internacionalmente reconhecido – e mais recentemente também alvo de ataques de grupos conservadores no Brasil, Paulo Freire completaria 100 anos no próximo dia 19. Diversas instituições têm promovido ações para celebrar e revisitar a obra do educador. Para marcar a data, o Instituto iniciou no último dia 8 uma série de webinários que retomam a obra e o legado de Freire, considerado “patrono da educação brasileira” desde 2012.

Mais conhecido pelas suas contribuições no campo da pedagogia, Freire também aplicou suas ideias e propostas às suas experiências como gestor e assessor de políticas educacionais no Chile e em países africanos. Para saber um pouco mais sobre essas vivências, entrevistamos Sérgio Haddad, coordenador de Projetos Especiais da Ação Educativa e autor do livro “O educador: um perfil de Paulo Freire” (2019, Ed. Todavia). Haddad também é um dos convidados do segundo webinário que o Instituto promove sobre o educador.

“Eu tenho dito sempre que ninguém é obrigado a gostar do Paulo Freire. Se não gosta, não gosta. Mas eu acho que todos deveriam conhecer, é obrigatório conhecer o pensamento dele pelo tamanho da importância dele”, ressalta.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista:

A partir de toda a sua pesquisa e do seu conhecimento sobre a obra, na sua avaliação qual é a principal contribuição do Paulo Freire no campo da gestão educacional e da gestão escolar?

SÉRGIO HADDAD – Eu acho que ele traz uma contribuição sobre um modo de conceber a administração que está muito de acordo com o pensamento dele e das coisas que ele escreveu etc. E o que seria isso? Paulo Freire é uma pessoa muito preocupada com o conhecimento e a participação dos atores sociais de uma maneira geral. Em todo o processo da implementação do trabalho que ele fez como gestor público e em outros lugares em que foi assessor, por exemplo, na África, Chile etc., ele tinha essa dimensão muito marcada, que era a de como trazer a experiência das pessoas que fazem a educação para o campo da política educacional, como aproveitar isso.

Duas coisas neste contexto foram muito importantes: por um lado, a descentralização, por outro, a participação. Esses dois elementos são centrais porque se você pega a gestão dele, foi uma gestão que, vamos dizer, desapertou o núcleo, a Secretaria em si de maneira a distribuir responsabilidades, inclusive empenho de recursos para outras instâncias até chegar na base do sistema, entre os professores e a comunidade escolar que também se envolveu. Ou seja, a comunidade escolar, o corpo de pais, a comunidade em torno na região, a escola aberta no fim de semana, uma outra perspectiva de um outro tempo histórico em que essas coisas eram muito valorizadas.

A participação do professor não se dava apenas sob o ponto de vista administrativo, mas também pedagógico, com a ideia de construção de um currículo com a participação dos professores, a ideia de se construir projetos interdisciplinares em cada unidade.

Tudo isso levava a uma ideia de participação neste processo de descentralização. E participação também nos núcleos administrativos, que se reuniam e depois iam “subindo” com representações até chegar nos conselhos mais centrais para tomar as decisões.

Um outro aspecto é que participar exigia uma certa formação e essa formação foi oferecida pelas universidades como uma educação continuada. Paulo Freire logo no início fez um acordo com a USP, Unicamp, PUC, para a formação de professores e professoras, de educadores, educadoras de uma maneira geral. Isso foi importante no sentido de que essa formação ajudava não só no conteúdo das disciplinas, mas também no desenvolvimento da capacidade de participar, de dialogar.

Outro aspecto importante é a questão cultural. Paulo Freire sempre teve de uma maneira muito explícita a ideia de construir uma escola popular, o que respeitar o saber, o conhecimento dos alunos, a forma como eles se expressam, escrevem, seu universo vocabular.

É até muito interessante porque na primeira entrevista que ele deu, logo depois que o grupo que assumiu a Secretaria se reuniu para preparar esses projetos, ele fez um comentário no sentido de que orientaria os professores e as professoras a não passar a caneta vermelha nos erros dos alunos e isso foi interpretado pela imprensa naquela época como: ‘professor Paulo Freire diz que agora professor não vai mais corrigir o aluno.’ O que ele estava dizendo é que essas crianças não podiam ser culpadas, ter a sua autoestima rebaixada porque eles falavam um universo cultural que era próprio deles, mas, a partir do que eles falavam, mostrar sim outras formas, uma norma mais formal. Tudo isso marcou muito a gestão do Paulo Freire.

Eu mencionei África e Chile porque também o aspecto cultural dos alunos e alunas marcou muito. Na África, o grande desafio do Paulo Freire foram os países ex-colônias portuguesas e, portanto, com uma gestão educacional portuguesa de muitos anos. Ele foi assessor da maioria desses países de língua portuguesa.

Essa experiência dele no Chile e na África foi antes ou depois da secretaria?

SÉRGIO HADDAD – Foi quando ele estava no exílio [de 1964 a 1979]. Na verdade, ele começa de 75 até 80, na segunda metade do período em que esteve na Suíça, porque ele saiu daqui, passou pela Bolívia, foi para o Chile, depois ficou quase um ano nos Estados Unidos e depois 10 anos na Suíça. Nos últimos cinco anos ele foi convidado a trabalhar nesses países: na Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique… Em todos esses países uma das maiores preocupações dele foi criar um sistema educacional que fosse próprio da cultura das comunidades daqueles países, o que ia desde retomar o ensino da língua originária até trazer toda a cultura ancestral, a cultura africana para dentro das escolas de maneira a se fazer uma educação decolonial, que tirasse a presença da metrópole de anos de vigência, com uma cultura portuguesa imposta a essa cultura africana.

A mesma coisa ele fez no Chile no trabalho que teve com os camponeses de valorizar a cultura camponesa, de fazer crítica, vamos dizer, a toda a ideia dos agrônomos levarem a informação. Por isso, ele tem um livro chamado ‘Extensão ou Comunicação?’ , em que ele apresenta a ideia de trocar ideia de extensão, de levar conhecimento, como ele sempre diz, por uma ideia de comunicação popular, de troca, de valorização de um conhecimento que estivesse na mão desses camponeses; provavelmente muitos dos agrônomos iriam mais aprender do que ensinar dependendo da experiência desses camponeses. Então, esse é um outro aspecto muito importante da gestão que é a valorização da cultura.

Mais duas coisas que eu acho que são importantes: Paulo Freire na sua gestão valorizou muito a qualidade física das escolas, ficava muito preocupado com a ideia de se ter uma escola agradável, arejada, por mais difícil que isso pudesse ser em relação a sua própria gestão e às dificuldades de toda natureza, ele procurou dar esse tom de uma escola bonita, uma escola popular, o que não quer dizer que ela tenha que ser precária ou pobre.

A outra coisa que eu acho que é importante dentro desse nível de descentralização e participação foi a experiência do MOVA, que é o movimento de alfabetização e que ele pôs nas mãos dos movimentos sociais, das organizações populares, organizações religiosas etc., o desafio da alfabetização em parceria com a própria Secretaria. O que não é abrir mão dessa responsabilidade, ao contrário, é apoiar essas iniciativas já existentes assessorando, fornecendo formação aos professores, material necessário e ao mesmo tempo àqueles que quisessem desenvolver oferecendo toda uma concepção, um método de trabalho a ser definido com essas pessoas.

Em linhas muito gerais, eu acho que são essas características que marcaram a gestão que é uma tradução do pensamento do Paulo Freire que ele já vem desenvolvendo desde Educação como prática de Liberdade, Pedagogia do Oprimido.

Freire não conseguiu implementar uma das ideias dele que era a eleição de diretores. Recentemente, o CNE aprovou o marco de competências para os diretores escolares, que define uma série de competências que o diretor tem que ter tanto de ordem administrativa, financeira, como pedagógica, relacional e política.

Pensando, por exemplo, que ele defendia essa eleição de diretores, Paulo Freire tinha uma visão do diretor como uma figura mais eminentemente política?

SÉRGIO HADDAD – Com certeza, mas acho que também como liderança, que pudesse coordenar um trabalho educativo nas escolas e que mantivesse essa concepção de diálogo, de participação, de descentralização, de chamar os pais, de chamar os alunos, de criar os conselhos de escola. Coisa que Paulo Freire já desenvolvia quando trabalhava no Sesi de Recife, ele começou a fazer essas experiências lá em 1947, essa ideia dos círculos de pais e mestres e tal.

Em vários dos seus trabalhos, por exemplo, em A Educação na Cidade, que é um livro com várias entrevistas, ele fala sobre isso. Ele respeitou e não impôs porque foi um processo participativo, assim como foi a implementação do Estatuto do Magistério.

Paulo Freire acreditava que os seus pares têm que reconhecer nessa pessoa [o diretor] a liderança e ao mesmo tempo uma capacidade para desempenhar o papel que ele tinha. Essa era a aposta que a equipe do Paulo Freire tinha em relação a isso.

Na pesquisa que você fez para o livro, foi possível identificar qual reflexão ele fez depois desse período em que foi gestor aqui em São Paulo?

SÉRGIO HADDAD – Tem essa referência dele em uma série de livros que ele publicou na sequência refletindo um pouco sobre o trabalho dele. Não só o A Educação na Cidade, que foram entrevistas, mas também em Pedagogia da Autonomia, que no meu ponto de vista é um livro muito importante para conhecer o pensamento pedagógico de Paulo Freire porque ele fez esse diretamente voltado ao professor e à professora, ao educador e à educadora, e ali tem os seus conteúdos filosóficos e pedagógicos muito marcados, e outros trabalhos que ele foi publicando no final.

Eu acho que da saída dele em 91 até 97, quando ele veio a falecer, nesses anos todos ele publicou também o Pedagogia da Esperança, que é um livro em que ele refaz o percurso do Pedagogia do Oprimido certamente trazendo a experiência dele como Secretário.

Eu acho que a marca dele foi essa da descentralização, da participação e participação significa reconhecimento do saber da comunidade escolar, da comunidade no entorno da escola.

Como você está falando, essas ideias de diálogo, participação, democracia são muito fortes na obra de Paulo Freire, assim como o papel da escola na construção desses valores. 

Me parece que mais do que nunca, o pensamento dele se mostra muito pertinente para os tempos atuais que estamos vivendo. Eu queria que você comentasse um pouco essa atualidade do pensamento de Paulo Freire nessa perspectiva da democracia, da participação cidadã e tudo mais.

SÉRGIO HADDAD – Eu acho que tem alguns elementos no pensamento Paulo Freire que são bastante importantes. O fato de ele defender a escola, por exemplo. Muita gente pensa que o pensamento dele foi feito para a educação popular, fora da escola e não para a escola. O que não é verdade, ele sempre defendeu a escola, sempre. Mas ao mesmo tempo ele entendia que a educação estava na vida das pessoas.

Isso nos mostra um pouco que o que a gente está vendo é uma sociedade muito dividida, uma sociedade com valores em conflito, uma sociedade que vem defendendo pontos de vista muito contrários e as pessoas se considerando inimigas uma das outras, com valores que a gente até se surpreende muitas vezes com amigos, amigas familiares que têm posições tão autoritárias e muitas vezes até racistas, homofóbicas etc.

Então, tem uma educação que está na sociedade, nas famílias, na comunidade. Isso acho que Paulo Freire sempre alertou muito fortemente: sobre o quanto é importante atuar na escola, mas ao mesmo tempo atuar como educador nos mais diversos contextos em que você está, ou seja, na família, na comunidade, na igreja, em todos esses espaços porque são espaços de formação das pessoas.

Outro elemento importante dos dias de hoje é que Paulo Freire sempre defendeu a ideia do diálogo como método de superação das adversidades enfrentadas. Defendeu a ideia de você construir um sonho, uma utopia e ir atrás disso, e como é que se faz isso? Construindo passo a passo.

Tem um termo que ele usa que são inéditos viáveis, que é você construir um caminho mesmo que a coisa esteja lá na frente. Para construir esse caminho você tem que dar passo a passo, inéditos viáveis que vão te levando para um caminho importante. E frente à utopia, ao sonho, esse caminhar é uma forma de você esperançar.

Esse termo esperançar que está muito frequente agora em função do Paulo Freire é um termo importante para reconhecer que a esperança é diferente de esperançar. A esperança é um substantivo, o verbo esperançar é um verbo que te põe em movimento. Não fique esperando acontecer o que está por aí e por isso você tem que avançar no esperançar dando esses passos.

E o diálogo, como eu estava falando, é um diálogo que respeita as diferenças. Ele só se dá na medida em que houver também uma disponibilidade da outra parte para o diálogo. E essa é uma dificuldade que existe, mas não tem jeito de superar a diferença se não for permear a posição dele, construindo pontes possíveis de mudança de acordo com a expectativa das pessoas, com os sonhos das pessoas. Eu acho que ele é muito atual para a gente pensar no que estamos vivendo hoje.

Paulo Freire não faz separação entre o político e o educacional, o político que eu digo não é o partidário, é o político no que se refere a valores, de poder. Isso está muito marcado também na pedagogia dele. O que nós estamos vendo? Estamos vendo um processo justamente de um confronto com ideias que são contrárias ao pensamento da maioria da sociedade inclusive, que fez o Plano Nacional de Educação, que fez a Constituição… Essa ideia de você ter uma educação para poucos, da privatização, da homeschooling, a ideia da escola sem partido… E tudo isso com um controle, uma censura sobre as questões de gênero, a não implementação das normas para a superação do racismo.

Isso tudo conforma politicamente um jeito de pensar a educação que está de acordo com o atual governo, esse grupo que está no poder e que vem implementando gradativamente um modelo de educação que é bastante contrário ao pensamento de Paulo Freire. Há uma dimensão política importante de ser percebida.

Eu ia fazer uma pergunta sobre essa questão da demonização do pensamento dele, mas é consequência de tudo isso que você acaba de falar.

Claro, afinal, ele pensava o contrário, pensava numa escola ampla, universal, popular… Enfim, é um outro caminho…

Você poderia falar um pouco também da contribuição do Paulo Freire para a educação e para os desafios atuais da educação.

A comemoração do centenário de Paulo Freire nos faz não só reconhecer nele um educador extremamente importante, muito reconhecido no plano nacional e Internacional e muito utilizado. Reconhecimento esse que você pode verificar pelo número de livros vendidos, pela quantidade de citações que ele tem no plano internacional, nacional. Esse é um reconhecimento importante de celebração e também de defesa de alguns legados que ele nos traz e de algumas formas de pensar a educação que ele desenvolveu e trouxe para as pessoas reutilizarem. Paulo sempre dizia isso: ‘vamos reaprender sempre com as diversas teorias’ e ele certamente gostaria que ele fosse reinventado. Ele gostaria que a gente utilizasse o Paulo Freire para reinventar um momento, a nossa ação educacional, a nossa ação como professora, como professor para esse momento histórico.

Eu tenho dito sempre que ninguém é obrigado a gostar do Paulo Freire. Se não gosta, não gosta. Mas eu acho que todos deveriam conhecer, é obrigatório conhecer o pensamento dele pelo tamanho da sua importância. Não acho que este é o momento de tomá-lo como um mito. Chega de mito, não precisamos de mitos e não queremos tomá-lo como um, mas devemos tomá-lo como um intelectual da educação que traz coisas importantes para a gente pensar.

Algumas coisas importantes para gente pensar: é importante pensar que a educação está na vida das pessoas e não está só na escola. Está na família, na comunidade, nos movimentos sociais, está na igreja, em vários locais onde se veiculam valores, onde você aprende, ensina e com isso vai construindo a sua vida.

Não dá para culpabilizar a escola sobre tudo o que ocorre, mas ela tem um papel importante e essa é a dimensão que Paulo Freire traz.

Mas eu fico pensando que num momento em que valores tão conservadores e contrários aos direitos humanos estão florescendo nos diferentes espaços, a escola não ganha uma dimensão importante nessa formação, nessa questão da educação para os direitos humanos?

SÉRGIO HADDAD – Não tenha dúvida. É verdade que a escola tem um papel importante na formação das pessoas, na formação de direitos humanos, é verdade também que toda a sociedade tem essa responsabilidade nos seus diversos espaços no educar e aprender.

Paulo Freire nos traz a ideia da importância de se pensar que um projeto de sociedade é um projeto que tem que trazer a educação junto e isso significa que a educação tem uma dimensão política importante.

Qualquer projeto de sociedade tem que levar em conta que a educação tem um papel fundamental e Paulo Freire sempre nos lembrava disso. Qual é o objetivo da educação? Você faz uma educação para os direitos humanos ou você faz uma educação para a competitividade, para o mercado? Então acho que esse projeto é um projeto de sociedade que tem que carregar educação nele.

Depois, Paulo Freire sempre pregou a ideia do diálogo como um processo importante não só de aprendizagem, mas também de criar unidade, de superar dificuldades, trazer as pessoas num processo de construção de caminhos coletivos para superar as dificuldades que todas as sociedades têm.

E, finalmente, a ideia de que há que se respeitar a cultura das pessoas. Se você faz um diálogo, o diálogo significa que não há saber mais ou saber menos, como ele pregava. Existem saberes que são diferentes, então o que eu posso aprender com o outro e o que eu posso ensinar?

É por isso que ele dizia que você aprende ao ensinar e as pessoas ao aprenderem também ensinam. Todo professor ou professora que entra na sala de aula e sai igual, esse professor, essa professora não aprendeu nada. Por isso, a ideia do diálogo, de ouvir os alunos, os pais, a comunidade. Estes são alguns dos chamamentos que eu espero que a gente possa aproveitar desse centenário para aprofundar o conhecimento sobre o pensamento de Paulo Freire.