“Política de educação para o Ensino Médio tem que ser
política de juventude”
Maurício Holanda Maia, ex-secretário de educação
“Fazemos uma marcação colada nos meninos para que ninguém deixe de se inscrever no Enem”
Eliseu Paiva, diretor da escola Doutor Cesar Calls
“Diariamente a gente passa em sala e verifica quem não veio. Às 8h30 da manhã já tenho o nome de todos os alunos que faltaram”
Mayumi Lopes, diretora da escola Mário Alencar
A taxa de aprovação no Ceará subiu
17 pontos percentuais desde 2005
Nº 48 - mar.2019
• Estado já era referência nos anos iniciais, e despontou no Ideb de 2017 entre melhores no Médio • Prioridade a escolas vulneráveis, protagonismo jovem e gestão com foco no pedagógico foram ações centrais • Mobilização para o Enem também foi importante
Nos últimos dez anos, o Ceará foi reconhecido principalmente pelos avanços nos anos iniciais e finais do Ensino Fundamental. Nesses dois níveis, foi o Estado que mais cresceu no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) desde que passou a ser calculado, em 2005. De tão bem-sucedidas, algumas de suas políticas viraram referência para outras unidades da federação e para o governo federal. Uma delas é a alfabetização na idade certa, que nasceu no município de Sobral, foi expandida para todo o Estado e, em 2012, serviu de inspiração para o Pnaic (Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa). No caso do Ensino Médio, porém, até 2015 a rede pública do Estado caminhava em ritmo muito parecido ao do Brasil: ganhos pontuais num quadro mais próximo ao da estagnação.
Em 2017, além de continuar avançando nos indicadores do Ensino Fundamental, o Ceará registrou no Ideb um avanço mais significativo no nível Médio (de 3,4 para 3,8), ficando entre os quatro Estados com melhor desempenho no índice nesta etapa. O resultado seria melhor (assim como o de outros Estados nordestinos) se as notas das escolas de Educação Profissional fossem consideradas no cálculo, mas o MEC, alegando que a inclusão inviabilizaria a comparação com anos anteriores, acabou excluindo essas unidades, o que gerou inclusive protesto de governadores do Nordeste. Mesmo assim, o movimento de melhoria foi importante para sinalizar o potencial do Estado também nesta última etapa da Educação Básica.
O Ceará é o quarto e último Estado retratado nesta edição especial do Boletim Aprendizagem em Foco, que tratou nas três edições anteriores dos casos de Goiás, Espírito Santo e Pernambuco.
Um fator que pode facilitar a melhoria do Ideb no Ensino Médio nos próximos anos no Ceará é o fato de a geração que ingressa agora nesta etapa ser a primeira que se beneficiou integralmente dos avanços gerados em anos anteriores no Fundamental. Na avaliação de Maurício Holanda Maia, secretário de educação no Estado de 2014 a 2016, esse fenômeno, porém, não é garantia de melhoria, nem explica o ganho registrado no último Ideb.
“O avanço que vimos no Ensino Médio me parece muito mais resposta a dinâmicas e políticas específicas para esse nível de ensino do que reflexo da melhoria em anos anteriores. Minha experiência desde Sobral [Maia foi secretário municipal na cidade referência em educação] é que esses ganhos entre gerações não acontecem automaticamente. Ter uma boa base é importante, mas, se não houver políticas, programas e uma gestão eficiente na etapa seguinte, o efeito não aparece”.
Maurício explica que nos seis primeiros anos da equipe que assumiu o governo em 2007 o maior investimento foi na melhoria das condições das escolas. “O objetivo era ter melhores prédios, bibliotecas, mais equipe pedagógica. Depois a gente começou a investir paralelamente numa abordagem que eu considero a mais adequada para o Ensino Médio, que foi pensar no protagonismo dos estudantes. Politica de educação para o Ensino Médio tem que ser politica de juventude, olhar o jovem em todos os seus potenciais e dramas, e pensar como a escola pode ser um lugar para responder às necessidades dele”.
Rogers Mendes, secretário em 2018, também destaca o protagonismo jovem como fundamental no avanço recente. “Para que o jovem crie vínculo e veja sentido na escola, ele precisa ter um papel mais atuante. O problema é que a cultura brasileira na educação nunca foi de envolvimento do jovem no processo de aprendizagem. Chamamos eles para assumirem responsabilidades também”.
Apesar de os ganhos no Ensino Médio só agora aparecerem de forma mais significativa, algumas das mudanças citadas por gestores cearenses foram sendo construídas ao longo do tempo. Uma delas, muito importante, foi a mudança aos poucos de uma cultura escolar pouco acostumada a priorizar a aprendizagem dos alunos. Izolda Cela, secretária de educação de 2007 a 2014 e hoje vice-governadora do Estado, conta que tomou um susto ao perceber que em muitas escolas os baixos índices de aprendizagem dos alunos não eram uma preocupação central.
“Lembro que, nas minhas primeiras visitas às escolas, era comum me mostrarem projetos interessantes, coisas até muito bacanas, mas, quando eu fazia alguma pergunta em relação aos resultados de aprendizagem e de abandono, recebia respostas evasivas. Os diretores e suas equipes não sabiam dar informações básicas sobre suas próprias escolas. Um de nossos maiores desafios foi ir mudando essa cultura ao longo do tempo. Parece muito óbvio, mas não é. As redes podem perfeitamente sobreviver sem se preocupar tanto em relação à aprendizagem”.
Como em todo processo que exige mudanças profundas em sistemas complexos, o caminho não foi livre de percalços. Izolda lembra que uma das primeiras estratégias que a secretaria tentou fazer para melhorar a aprendizagem foi uma ação de reforço em Leitura e Matemática para alunos do primeiro ano do Ensino Médio, série na qual o índice de abandono chegava a 20%. “Mas não funcionou. E o problema não foi falta de material. Não tínhamos ainda um clima de governança em toda a rede, de acompanhamento e capacidade de mobilizar as escolas para aquele compromisso”.
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No caso do Ceará, todos os gestores entrevistados para este texto – da secretaria às escolas – citam como fundamental para a transformação da rede a mobilização em torno do Enem. Essa ação foi facilitada pelo fato de o exame ter ganho mais importância a partir de 2009, quando passou a substituir vestibulares de várias universidades públicas, e por valer como critério de seleção para bolsas do ProUni (Programa Universidade para Todos).
Entre as estratégias pensadas pela secretaria estavam ações como aulas de reforço para o 3º ano no meio das férias de julho, palestras motivacionais de alunos que foram bem-sucedidos na prova, professores que fazem “plantão” para corrigir redação, e até facilidades de alimentação e transporte no dia da prova.
Na Escola Estadual Doutor Cesar Calls, localizada na região central de Fortaleza, Renata Lins, 17, que estava no ano passado no 3º ano do Ensino Médio, conta que o foco no exame do MEC cria um movimento de mobilização para o estudo entre os alunos: “Em toda turma tem sempre um grupo que começa o ano dizendo que não quer fazer o Enem. Alguns acabam influenciados pelos demais colegas, mudam de ideia, e começam a estudar para o exame. E aqueles que continuam até o fim sem interesse ao menos não atrapalham quem quer estudar”.
Eliseu Paiva, diretor da escola, explica que, para mobilizar os estudantes para o Enem, há um esforço significativo tanto de sua equipe, quanto da secretaria de educação: “Fazemos uma marcação colada nos meninos para que ninguém deixe de se inscrever no exame. Ajudamos eles a fazerem a inscrição aqui mesmo na escola. E a secretaria nos cobra demais isso. Enquanto não chegamos a 100% de inscritos, não nos deixam sossegados”.
O esforço da escola não se resume a garantir que todos se inscrevam no exame. Há também toda uma preparação, que começa antes mesmo do 3º ano, para aumentar as chances de os estudantes irem bem na prova e conseguirem uma vaga no ensino superior. Como resultado, em 2016, apenas um dos 297 alunos não se inscreveu no Enem (em 2017 e 2018 foram 100%). E, dos inscritos, 80% foram aprovados em alguma universidade, pública ou privada.
“Desde o 2º ano já vão preparando a gente para o Enem. Quando começamos a fazer os simulados aqui, eu mal aguentava ficar duas horas sentado fazendo uma prova. Quando fiz o Enem, aguentei bem a maratona”, afirma Juan Moreira, também ex-aluno do 3º ano da escola. Ele conversou com a reportagem do Boletim Aprendizagem em Foco exatamente na semana entre as duas provas do exame de 2018.
Escola Estadual Doutor Cesar Calls, Fortaleza (CE)
Escola Estadual Doutor Cesar Calls, Fortaleza (CE)
Escola Estadual Doutor Cesar Calls, Fortaleza (CE)
Escola Estadual Doutor Cesar Calls, Fortaleza (CE)
Ao longo do tempo, a rede estadual cearense foi colecionando aprendizados que viraram ações comuns em todas as escolas. Por exemplo, a atenção que é dada aos alunos em maior risco de evasão (prática que nasceu também na rede municipal de Sobral) é algo constante. “Diariamente a gente passa em sala e verifica quem veio e quem não veio. Às 8h30 da manhã já tenho o nome de todos os alunos que faltaram. Monitoramos de perto isso e, se o aluno acumular mais de uma falta, ligamos para a família e marcamos uma conversa na escola”, conta a diretora da Escola Estadual de Educação Profissional Mário Alencar, Mayumi Passos Lopes.
A orientação para que isso seja feito e a sugestão de que os alunos que acumularem falta sejam procurados imediatamente pelas escolas é uma política da rede. Mas isso não substitui a criatividade dos gestores na busca por soluções que se apliquem a cada contexto. Na Mário Alencar, por exemplo, as turmas em que nenhum aluno faltou são premiadas com pequenas regalias, como, por exemplo, o fato de serem as primeiras a serem chamadas para o almoço ou para ocuparem o espaço nos ônibus. Na Escola Doutor Cesar Calls, até o cardápio da cantina foi alterado para diminuir a evasão: um baião-de-dois que fazia enorme sucesso e era servido às quartas-feiras passou para sexta-feira, dia em que as faltas eram maiores.
Obviamente, essas pequenas ações pontuais verificadas no chão da escola estão inseridas numa estratégia maior das unidades e da rede. Os gestores cearenses sabem, por exemplo, que para evitar a evasão é preciso também estreitar os vínculos entre os professores e alunos. Uma das maneiras de estimular isso foi a criação em 2008 do Projeto Professor Diretor de Turma, inspirado numa experiência de Portugal. “Cada turma tem um professor com uma carga horária maior designado para ser o principal elo entre a escola, o aluno e a família. Ele fica mais próximo dos estudantes, ajuda a solucionar conflitos, conversa bastante, liga para os pais quando necessário. Acaba sendo muito nosso parceiro, ainda mais numa escola de grande porte como a minha, em que não teríamos condições de dar uma atenção individualizada a todos os pais”, explica Eliseu Paiva, diretor da Cesar Calls.
Mauricio Maia, ex-secretário de educação, conta um episódio que resume bem a intenção do governo ao criar o Professor Diretor de Turma: “Em 2011, fizemos um concurso para diminuir o número de professores temporários na rede. Acontece que numa escola um desses professores era Diretor de Turma e não faria mais a função. Tive uma reunião com um grupo de 15 alunos, e um deles me disse assim: ‘vocês deram um amigo para a gente e agora vão tirar?’ Escutar isso de um jovem de 17 anos me fez ter certeza de que a estratégia estava correta”.
Na escola Mario Alencar, os professores relatam que o projeto ajudou a contribuir com uma prática já bastante disseminada na escola: “Aqui todo mundo é diretor, todo mundo é coordenador. A gente acompanha de perto os alunos do 1º ao 3º ano, e vê o desenvolvimento deles”, atesta Rafael Braga, professor e coordenador do curso técnico de enfermagem. “O trabalho em equipe é essencial. Para que a gente não se perca em vaidades e egos, todos precisam acreditar que estão aqui com um propósito comum, que é o foco no aluno. Quando isso acontece, as coisas fluem naturalmente”, diz a diretora Mayumi Lopes.
Escola Mario Alencar, Fortaleza (CE)
Escola Mario Alencar, Fortaleza (CE)
Escola Mario Alencar, Fortaleza (CE)
Para manter o foco na aprendizagem dos alunos, os gestores cearenses destacam a contribuição do programa Jovem de Futuro, do Instituto Unibanco. Uma das ações do programa é o Circuito de Gestão, que orienta e organiza processos, responsabilidades e atividades da gestão de escolas, regionais e secretarias, facilitando a conexão entre os diversos atores de todas essas instâncias. “A tecnologia que o Circuito de Gestão nos aportou foi muito importante. Eu visitava escolas, e via dados de aprendizagem na cantina. Parece simbólico, mas é lá que todo mundo vai. O Circuito facilitou o envolvimento de atores que eram até então apenas objeto do processo. Tive várias reuniões com grêmios escolares em que a pauta era abandono e aprendizado de matemática”, afirma Idilvan Alencar, que foi secretário estadual de 2016 a 2018.
Idilvan conta que algumas estratégias da rede foram inspiradas em ações do Jovem de Futuro. A ação de identificar escolas prioritárias, por exemplo, é citada como uma dessas contribuições, que passou a ter uma dimensão ainda maior quando virou uma política da rede. “Nem sempre o povo gosta de ouvir que a sua escola será prioritária, mas o que fizemos foi oferecer mais recursos e suporte a elas”, explica Idilvan.
Maria Elizabete de Araújo, coordenadora de Gestão Escolar da secretaria, afirma que outra contribuição importante foi o reforço na ideia de co-responsabilização: “Fizemos em 2017 uma chamada estratégica para mobilizar a rede. O secretário Idilvan Alencar foi para a linha de frente dizer ao corpo de gestores e professores que aquele resultado do Ideb não nos representava. Fizemos vários seminários em que pudemos conversar olho no olho com todos. Mas não ficamos num papel de acusar as escolas pelos resultados. Chamamos a responsabilidade para a secretaria também, identificando onde poderíamos apoiá-las escolas, especialmente aquelas que mais precisavam”.
A escola Doutor Cesar Calls, por ser de grande porte, foi uma das escolhidas como prioritárias. O diretor Eliseu Paiva lista tanto ações pedagógicas quanto de infraestrutura que foram resultado desse foco. Por exemplo, foi possível oferecer no contraturno aulas de reforço em matemática e português. Recursos para melhorias físicas foram liberados com maior rapidez. A quadra da escola foi reformada, e mais salas de aula puderam ser climatizadas. “Num Estado muito quente como o Ceará, isso é fundamental. Ter ar condicionado na sala diminui o calor e o barulho, pois o professor pode deixar a porta fechada”.
O Ideb do Ensino Médio da Cesar Calls é 5,0, muito superior ao da média do Ceará (3,8) e do Brasil (3,5). Nos anos finais do Ensino Fundamental, a escola deu um salto de 2,5 em 2009 para 5,9 em 2017. As melhorias físicas e o reforço pedagógico contribuíram para isso, mas, na opinião de Eliseu Paiva, o avanço é resultado principalmente da mobilização de sua equipe de gestores, professores e dos alunos. “Eu me lembro bem de uma frase do Idilvan Alencar com a qual me identifiquei muito. Ele disse num seminário que aquele Ideb do Ceará de 2015 no Ensino Médio não nos pertencia, que éramos muito melhores do que aquilo. Quando assumi essa escola em 2009, fiz questão de colocar no muro o slogan ‘uma escola de sucesso’. Fui numa reunião da secretaria e ouvi de um colega que eu era muito pretensioso. Respondi que se eu, que sou diretor, não acreditar que a escola pode ter sucesso, quem vai acreditar? Formamos uma equipe muito boa. Para os que faziam chacota da gente, mostramos hoje que somos mesmo uma escola de sucesso, e os alunos sabem disso. Essa escola se transformou a partir desse acreditar.”
“Se eu, que sou diretor, não acreditar que a escola pode ter sucesso, quem vai acreditar?”
Eliseu Paiva, diretor da escola Doutor Cesar Calls
Regime de Colaboração no Ceará: Funcionamento, Causas do Sucesso e Alternativas de Disseminação do Modelo
https://bit.ly/2DCF9Nb
O Programa de Alfabetização na Idade Certa
https://bit.ly/2S1KGC7
Projeto Professor Diretor de Turma
https://bit.ly/2GIF5OP
Relatório de Atividades Jovem de Futuro - Ceará
https://bit.ly/2H6Wz86
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