Em entrevista, ex-Secretário Nacional de Juventude comenta porque o instrumento permanece desconhecido pela maioria dos jovens

Sancionado em agosto de 2013, em resposta às manifestações de junho, o Estatuto da Juventude estabelece direitos até então não previstos para a população de 15 a 29 anos de idade, como o direito à participação e à representação política, à comunicação e à mobilidade, entre outros.

Em entrevista ao blog, Gabriel Medina, que tem uma ampla trajetória de militância na área de juventude (foi presidente do Conselho Nacional de Juventude-Conjuve de 2010 a 2012, coordenador de Juventude da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo de 2012 a 2015 e Secretário Nacional de Juventude durante o segundo governo da presidenta Dilma Roussef), fala sobre o processo de construção da necessidade de políticas específicas para essa faixa da população e sobre o histórico de lutas que resultaram na aprovação do Estatuto. “Os direitos estabelecidos no Estatuto são direitos importantes, constituídos, e é claro que não devem ser desconhecidos porque podem ser alvo de luta social para que se organizem políticas“, afirma Medina, que atualmente integra a equipe do Instituto. Confira a seguir os principais momentos dessa conversa:

Quais os principais avanços trazidos pelo Estatuto da Juventude?

MEDINA – O avanço no reconhecimento dos direitos da juventude vem de uma compreensão de que essa visão de adolescência que permeou o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] é insuficiente para dar conta dos desafios contemporâneos de uma faixa etária que não se emancipa aos 18 anos, num momento de muita demanda por uma especialização para ingresso no mundo do trabalho, de ausência de direitos assegurados.  Era preciso reivindicar um alargamento etário desses direitos e também uma compreensão que garantisse aos jovens maior autonomia na possibilidade de serem sujeitos das próprias políticas, ou seja, na reivindicação, na construção e na elaboração das políticas públicas.

Isso foi acompanhado por um movimento que vem da ONU [Organização das Nações Unidas], que instituiu o Dia Internacional da Juventude lá atrás, no final dos anos 90. No Brasil, no início dos anos 2000, começa a haver uma discussão mais efervescente sobre essa necessidade. Iniciativas municipais começam a tratar desse tema como Diadema [município da Região Metropolitana de São Paulo], São Paulo, Recife e algumas outras cidades começam a ter agendas voltadas para os jovens e finalmente a Câmara Federal cria uma comissão especial para tratar desse tema.

Essa comissão especial foi essencial para introduzir audiências públicas espalhadas pelo Brasil todo, em todos os estados, para convocar os jovens para conversar sobre direitos. Então, foram vários debates que tinham como tema educação, transporte, cultura e trabalho etc.  Essa comissão foi instituída em 2002, 2003, se não me engano.

Nesse processo, essa comissão teve um papel fundamental na instituição dos marcos legais. Tudo o que foi originado, tanto a PEC da Juventude que foi aprovada em 2010 quanto o Estatuto em 2013 e o Plano Nacional da Juventude (que ainda não foi aprovado, mas tramita na Câmara Federal) surgiram desse processo de audiência; são marcos legais. Tiveram várias pessoas que lideraram isso, Reginaldo Lopes, Manuela D ́ávila, enfim, tiveram outras figuras. Era uma frente pluripartidária, havia uma compreensão de que não era um tema de uma força política. Então, muita gente se envolveu nisso e convocou os movimentos jovens, que na época tinham uma certa articulação, em especial por conta dos movimentos de lutas anticapitalistas, do Fórum Social Mundial que tinha o Acampamento Intercontinental da Juventude… O Brasil também tinha várias redes de jovens no Nordeste e em outros lugares e que vão fazendo um processo de pressão de participação para que esses direitos se efetivassem.

Isso foi reforçado com a criação da Secretaria Nacional de Juventude, do Conselho [Nacional de Juventude] e do Pró-Jovem. Depois do Lula ganhar [as eleições presidenciais em 2002], demorou ainda um pouco para constituir uma política nacional de juventude; ela é criada em 2005 e foram ferramentas importantes para a institucionalização de uma política mesmo de reconhecimento, de ter um Conselho com uma pluralidade de atores, várias representações de todos os segmentos. Esse Conselho também foi importante para estabelecer um diálogo com o Congresso, de ir criando agendas de formulação. Teve um processo interessante de mergulhar numa compreensão sobre esses direitos, quem eram os jovens.

Foi legal também que misturou movimentos, ONGs, partidos e academia; foi bem plural esse campo de construção. No próprio Conselho [Nacional de Juventude], a Regina Novaes, que chegou a ser vice-presidente, é uma professora, uma acadêmica, mas tinham também movimentos sociais, ONGs importantes, as juventudes partidárias estavam representadas. Então, foi um campo bem amplo de construção e de consensos em torno dessa agenda.

Acho que um outro ponto importante do processo de participação foram as conferências, que também empurraram o processo de estruturação dessa agenda pública. Elas ocorreram em 2008, 2011, 2015 e mobilizaram cerca de meio milhão de jovens do Brasil todo nas etapas municipais e estaduais. Foram super importantes para visibilizar agendas políticas dos jovens que não eram tão tematizadas pelos partidos como, por exemplo, a questão da violência contra a juventude negra. Esse foi o primeiro tema mais votado de 2008. Essa era uma agenda invisibilizada e que hoje todo mundo reconhece, tendo ou não mais centralidade, como relevante.

Esse foi um pouco o caldo que produziu essa agenda. Fizeram várias blitz no Congresso Nacional para aprovar essas legislações, teve muita pressão para que isso acontecesse. E também para segurar retrocessos porque vários temas de perda de direitos dos jovens – especialmente a ideia da redução da maioridade penal – sempre estiveram presentes no Congresso. Tanto o Conselho quanto essa rede que se articulou em torno da agenda PPJ foi muito central para estar criando processos de resistência, de luta para que projetos que criminalizassem os jovens não prosperassem. Mesmo dentro dos governos Lula e Dilma tinham agendas controversas que eram apresentadas o tempo todo e que acabavam sendo debatidas.

Sobre o Estatuto, é inegável que [as manifestações de] junho de 2013 teve um papel fundamental para que ele avançasse porque apavorou os governos, a sociedade em termos da força dos jovens. Acabou fazendo com que se buscasse uma resposta para atender a juventude, daí o Estatuto da Juventude é aprovado neste momento. E embora tenha sido uma coisa importante de ser aprovada, só foi reconhecido pela galera mais ativista.

O que do Estatuto foi efetivamente implantado e que avanços ele promoveu?

MEDINA –O ID Jovem é uma das conquistas mais concretas do Estatuto, que é a meia entrada cultural esportiva para jovens de baixa renda, os estudantes já têm a meia entrada e o meio passe para duas cadeiras e dois passes livres por transporte interestadual aquático, rodoviário e ferroviário. Ele tem sido conhecido um pouco mais agora mais no boca a boca, não tem grandes campanhas do governo para divulgar essa política.

O Estatuto indicava a necessidade de regulamentação do Sistema Nacional de Juventude, o que ocorreu em 2016, mas nós perdemos no Congresso o debate do Fundo que financiaria as políticas públicas. Então, na verdade, é uma estrutura institucional que não tem como se pagar porque não tem o Fundo.

Os direitos estabelecidos no Estatuto são direitos importantes, constituídos, e é claro que não devem ser desconhecidos porque podem ser alvo de luta social para que se organizem políticas; por exemplo, o reconhecimento da livre orientação sexual está no Estatuto, é a primeira legislação do país a reconhecer isso. Mas, ao mesmo tempo, vamos dizer assim, isso não se concretizou numa política, muito embora ele possa ser acionado para que vire um programa e também em algum processo contra algum tipo de violação. A lei é sempre um instrumento para luta jurídica.

O que precisa ser contextualizado é que o Estatuto foi aprovado em um momento de dissenso do investimento público e crise econômica, em um momento de corte de direitos e enxugamento da máquina estatal, especialmente com a crise de 2013, 2014… Então, o Estatuto da Juventude foi aprovado em um contexto de muita fragilidade institucional e política do Estado. Esses elementos são essenciais para a gente fazer uma análise mais profunda [sobre o porquê da não implementação do Estatuto].

Por exemplo, diferente do ECA, que é um instrumento legal aprovado num momento muito interessante do Brasil que é a [promulgação da] Constituição de 88 e quando começam a se configurar todas as políticas sociais estruturantes no país. O ECA se entrelaça junto com os grandes sistemas, o SUS [Sistema Único de Saúde], com o SUAS [Sistema Único de Assistência Social]… Quando você olha esses sistemas, lá tem muita coisa dele, diferente do Estatuto da Juventude, que efetivamente não bebeu do mesmo tempo histórico dessa ampliação de direitos e por isso ficou muito prejudicado na sua possibilidade de ampliação de políticas, de programas, enfim…

Qual a função do Sistema Nacional?

MEDINA – Ele constitui a arquitetura da gestão da política. A política de juventude tem que ter conselho, órgãos gestores de juventude nos municípios, participação social, uma série de coisas que determina uma ideia de um desenho de como a política deve ser gestionada. Tem um problema grave nesse desenho: nós não temos os programas e as políticas. Porque, depois de um estatuto aprovado, o ideal é que se aprove um plano porque o estatuto define ‘quais são os direitos’ (direito à educação, ao trabalho etc).

Para que os direitos sejam estruturados, é preciso ter políticas e programas. Então, para alcançar o direito ao trabalho eu tenho o Jovem Aprendiz, mas o que mais eu tenho para os jovens? Tem um sistema nacional público de emprego? Tem uma política de atendimento nos sistemas dos Cates [Centros de Apoio ao Trabalho e Empreendedorismo], os pontos de atendimento do trabalho? Tem algum atendimento específico para os jovens? São várias coisas que poderiam estar sendo estruturadas e aí se constitui um sistema que é a arquitetura desse conjunto de políticas e programas.

O problema é que não foi aprovado o Plano Nacional de Juventude e foi aprovado um sistema sem dinheiro e sem política e programa. Então, tem um estatuto que está pendurado num sistema que é oco, somado ao fato de que a secretaria nacional de juventude vem sendo esvaziada, já não era forte, já era super frágil e hoje é mais frágil ainda, então se tem um problema maior, é mais complexo nesse processo todo, vamos dizer assim.

Mas, a despeito desse governo atual e de não ter sido aprovado o Fundo e o Plano Nacional de Juventude, você vê nos estados políticas e programas para essa população que são desdobramentos ou estão embasados no Estatuto? 

MEDINA – Com certeza, mas são poucos os lugares que têm e que priorizam a temática. Se você for olhar, por exemplo, a cidade de Fortaleza (CE), eles têm uma experiência incrível, é a cidade com a maior política de juventude do país. Tem os CUCA, que são centros de atendimento de arte, cultura e esporte, funcionam no contraturno escolar; tem todo um conjunto de políticas que foram implementados em Fortaleza que são incríveis. Em Curitiba tem um conjunto de equipamentos esportivos com uma área de Juventude, tem em alguns estados algumas Secretarias de Esporte e Juventude. Pernambuco tem experiências na política estadual, agora no Rio criaram uma Secretaria de Juventude..

Diante desse histórico de que na verdade nunca foram criadas as condições para o estatuto ser implementado, então o desafio é a implementação, o financiamento…

MEDINA – É tirar do papel. Ter um Plano Nacional de Juventude com políticas e programas articulado com PPA [Plano Plurianual] do país, com políticas estratégicas transversais colocando a juventude nos grandes temas incluindo o SUS, o Suas, os grandes programas; ter um grande programa de enfrentamento à violência, um plano de enfrentamento aos homicídios, com foco na juventude negra e nos territórios com os piores indicadores; garantir um trabalho decente para os jovens, incluir o tema da juventude no Sistema Nacional de Emprego… Enfim… criar um plano de acesso à cultura e a mobilidade dos jovens. Poderia ter um grande plano para os jovens viajarem pelo Brasil, conhecerem o seu país, fazendo turismo como é na Europa, por exemplo, o Brasil com tantas coisas, tantos recursos naturais, lugares lindos, com conjunto de equipamentos de camping, albergues, enfim, poderia ter uma política estruturante para uma geração. É claro que eu estou falando de coisas até mais amplas para não ficar só no básico, mas criar condições de constituir uma política para juventude usar seu tempo livre, poder experimentar esse momento que é um momento de formação, de ampliação cultural, para que não só o jovem de classe média possa fazer isso, mas um direito de todos os jovens brasileiros.

De todos esses direitos que você mencionou que o Estatuto estabelece e define, é possível destacar alguns deles?

MEDINA – O direito à liberdade de expressão e comunicação é um tema novo; o direito à participação não estava tão presente no ECA, a participação e representação dos jovens nas próprias organizações, assim como o direito ao território. Obviamente o direito à educação e ao trabalho que já estavam presentes em outros instrumentos assim como educação, trabalho, cultura profissionalização que são direitos fundamentais da Juventude. O direito à mobilidade está presente e é algo novo e tem muito a ver com os protestos de junho. São alguns temas mais contemporâneos que eu acho que ajudam a entender não só importância da faixa etária, mas de novas temáticas que foram incluídas.