Artigo 205 – Episódio #3 – O novo ensino médio na prática
Apresentador: O Brasil é muito grande. Para que todo mundo possa estudar, muitas vezes é preciso oferecer transporte para quem vem de localidades distantes. Muitos vêm de ônibus, alguns, até de barco. Normalmente viajam juntos crianças e adolescentes de várias idades, mas qualquer pequena mudança acaba gerando um impacto para muita gente.
É o que acontece agora em muitas localidades que, a partir de 2022, vão implantar o Novo Ensino Médio, com uma carga horária maior do que a que eles tinham até agora. Por causa disso, os estudantes do Médio e das outras etapas terão dificuldade de usar o mesmo transporte para ir à escola porque o horário vai ficar descasado.
Apresentadora: Olá! Este é o segundo episódio em que vamos falar da implantação do Novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular. Eu sou Marta Vancini e estou aqui com Rubem Barros.
Apresentador: Sejam muito bem-vindas e bem-vindos a mais este episódio do Artigo 205, o podcast em defesa do direito à educação.
Apresentadora: O Brasil e a educação brasileira já conheceram muitas leis e projetos bem avaliados, reconhecidos internacionalmente, mas que, por fatores diversos, deixaram a desejar na hora da implementação. É o caso da Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, concebida no entusiasmo da redemocratização, que permitia novos arranjos educacionais que acabaram por não sair do papel. Mesmo as Diretrizes Curriculares Nacionais, escritas e reescritas depois da LDB, também não foram apropriadas por muitos professores.
Apresentador: Outras experiências, como a bem-sucedida introdução de mais um ano no Ensino Fundamental, que passou a ter nove anos, levaram tempo para ser implantadas. Foi o caso dessa experiência, homologada em 2006, e que pôde ser realizada até 2010. Foi o intervalo necessário para resolver as dúvidas sobre a idade inicial, o currículo e para responder às demandas de infraestrutura dos municípios.
Por esse motivo, a implantação do Novo Ensino Médio vai exigir um processo contínuo ao longo dos próximos anos, com acompanhamento, adequações e muito investimento por parte de governos e gestores públicos em geral.
Apresentadora: Quando se faz uma mudança de grande porte que mexe com o funcionamento de todas as redes estaduais, não é só a parte pedagógica que está envolvida. A gente pode dizer que o resultado pedagógico é o objetivo final a ser alcançado, mas, para que ele dê certo, é preciso haver uma rede de serviços que permita o bom funcionamento do sistema. Para dimensionar todas essas mudanças, a implementação previu que primeiro houvesse experiências piloto, escolhidas a critério dos estados. Nelas seria possível ver, em escala reduzida, o que é necessário para que toda a engrenagem funcione bem.
Especialista em políticas e administração públicas, a pesquisadora Gabriela Lotta coordena um estudo, encomendado pelo Instituto Unibanco, para avaliar o processo de implementação das medidas.
Gabriela Lotta: O processo de expansão tem sido heterogêneo. Isso tem que ver com duas coisas. Vou explicar quem faz pouco: quem faz pouco o faz porque é muito cuidadoso e está escolhendo a dedo as escolas para ver o quanto a coisa dá certo – e é uma experiência realmente muito acompanhada, é um experimento de verdade. Mas a gente tem outra situação de estados que fizeram pouco porque não têm recurso nem capacidade de expandir para além daquilo que ele consegue do financiamento federal. E a gente teve também diferenças de financiamento nesse processo: o governo federal estava mais ativo e agora está menos. Isso acaba deixando os estados um pouco receosos (como os que não têm muita arrecadação própria, por exemplo) de investir em uma coisa nova que depois não vai ter o dinheiro do governo federal para manter.
Já os estados que expandiram muito é um pouco o oposto disso. Ou expandiu a quantidade de recurso que o governo federal repassou (e aí decidiram ampliar) ou expandiu porque também já tinha experiências próprias. Vou contar o caso do governo de Pernambuco que foi o primeiro estado que fez, por exemplo, de maneira expansiva no Brasil, escolas em tempo integral. Para eles, expandir piloto com tempo integral já era o que eles faziam. Para eles era muito fácil continuar na mesma toada do que eles já tinham feito.
Apresentador: Mas ninguém contava com uma dificuldade adicional que surgiria em março de 2020: a pandemia de Covid-19, agravada, ainda, pela desarticulação da educação em nível federal.
Vitor de Angelo, secretário de Educação do Espírito Santo e presidente do Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed), fala da experiência em seu estado:
Vitor de Angelo: A pandemia não prejudicou tanto quanto talvez à primeira vista a gente imaginasse. Nós conseguimos desenvolver um trabalho razoavelmente no mesmo ritmo. Lógico, no começo da pandemia deve ter havido uma perda, que eu atribuo a uma ruptura absoluta do cenário que a gente tinha em março de 2020. Com essa ruptura, as equipes foram colocadas em home office, você tem uma virada de chave da maneira como a gente trabalhava para uma outra na qual não necessariamente todos estavam acostumados – nem as pessoas nem a estrutura da administração pública. E isso, possivelmente, representou uma perda de ritmo. Mas o fato é que nós conseguimos, paralelamente ao trabalho de enfrentamento à pandemia em 2020, continuar o nosso trabalho de estruturação do Novo Ensino Médio, a tal ponto de termos feito todo o processo de escrita do currículo, formação geral básica, itinerários formativos, consulta pública, envio para o Conselho de Educação, aprovação no Conselho e homologação. O que prejudicou o andamento do trabalho foi a descontinuidade da política de apoio às escolas piloto – ou melhor, as incertezas, sobretudo de ordem financeira. A ideia de escola piloto o próprio nome já diz: é você pilotar algo que depois vai ser escalado para toda a rede. Mas, se naquela proposta de piloto não há condições para pilotar o que depois vai ganhar escala, ora, não dá para tirar nenhuma avaliação daí. Nós vamos possivelmente dar escala antes de ter pilotos e, portanto, antes de tirar conclusões desses pilotos. O que que eu quero dizer: nós tínhamos a primeira parcela do financiamento vindo do MEC para as escolas piloto e depois não tínhamos a segunda parcela. Aquilo que foi proposto no plano de trabalho a ser financiado pelo MEC ficou completamente comprometido. E, por conseguinte, todo o espírito do que é uma escola piloto.
Apresentadora: Identificar as questões de logística é um ponto-chave para que a oferta – ou a falta dela – não prejudique os alunos de municípios mais distantes ou vulneráveis. Para atendê-los, é necessário que haja um bom planejamento e infraestrutura adequada, levando em conta as especificidades regionais e mesmo das escolas. Rosemary de Albuquerque Silva, diretora da Escola Nossa Senhora Auxiliadora, no município de João Alfredo, traz a perspectiva de quem lida com jovens de uma cidade do agreste pernambucano.
Rosemary de Albuquerque Silva: O Novo Ensino Médio dá uma oportunidade para o aluno escolher o caminho que quer seguir. Ele terá os itinerários formativos para poder ter uma direção. O cuidado que a gente tem que ter é não dar a fórmula pronta, não engessar e não deixar que os meninos fiquem sem opção. Esse é um cuidado que eu tenho, falando principalmente da minha realidade: João Alfredo é uma cidade com 36 mil habitantes. É uma cidade do interior que tem duas escolas de Ensino Médio. Temos que ter muito cuidado nas escolhas que faremos dos itinerários para que tenhamos o maior número de ofertas possível para que os alunos não fiquem sem opção. Se eu oferto um itinerário formativo que não condiz com a realidade do aluno, ou ele vai cursar aquele ou ele vai ficar sem estudar, pois, para isso, ele teria que se deslocar para outra cidade, o que já gera uma situação completamente diferente em questão de renda, transporte, de tudo.
Cada escola tem uma identidade. Eu gosto muito de frisar isso. Nós temos duas escolas estaduais, mas cada uma tem o seu perfil, tem uma clientela que faz essa opção por empatia, pela história da escola… A gente sabe a clientela que a gente já recebe e estou aqui como gestora dessa escola há oito anos, então sei que 95% da minha clientela vem da zona rural. Eu tenho que ouvir, escutar e ver qual itinerário formativo vai ser interessante para os meninos que frequentam a escola. O cuidado que eu falo é este: de ver o profissional que nós temos na escola – o professor é a peça fundamental na implementação do Novo Ensino Médio, como é também na educação, junto com os estudantes. E eu tenho que entender que preciso juntar a mão de obra que eu tenho, que não vou me desfazer dela, e a clientela que eu tenho.
Apresentador: Vitor de Angelo faz eco à fala de Rosemary no alerta para que os alunos possam escolher o itinerário que desejam para suas vidas:
Vitor de Angelo: Não adianta o estudante do Espírito Santo ou de qualquer outro estado olhar para o currículo do Novo Ensino Médio na sua região e pensar: “Puxa, que ótimo! Vou poder fazer este itinerário”, mas aquele itinerário nunca é ofertado na sua escola porque o gestor local só oferece o mínimo necessário para dar a opção – e basta ter dois itinerários para já se ter uma escolha. Então veja como nós temos aqui uma dificuldade, que passa pela regulamentação de cada Conselho: eventualmente, se os Conselhos obrigarem as redes a oferecer mais itinerários em escolas que sejam a única na sede, por exemplo, que não foi o caso do nosso Conselho aqui, isso pode proteger o estudante de uma tomada de decisão, no nível da gestão, que lá na ponta efetivamente não traz flexibilidade praticamente nenhuma para ele.
Apresentadora: Para tentar atender às expectativas diversas dos estudantes, a rede estadual de Goiás criou 17 itinerários formativos, sendo três deles voltados para a educação profissional e tecnológica nas áreas de Química, Administração e Informática. Superintendente de Ensino Médio no Estado, Osvany Gundim conta soluções adotadas em sua rede:
Osvany Gundim: Com relação às nossas escolas, nós também já temos uma arquitetura desenhada para contemplar todas as unidades escolares nas quais consideramos ser viável implementar o itinerário formativo a partir da 2ª série, visto que na 1ª série estamos trabalhando com bastante ênfase no Projeto de Vida para que o estudante amadureça e tenha condições de fazer uma escolha mais consciente e assertiva a partir da 2ª série. Nós já implementamos a matriz em todas as 1ªs séries, com exceção do turno noturno, e em alguns municípios onde nós temos um grande desafio relacionado ao transporte escolar.
Na 1ª série, nós temos, no núcleo de flexibilização, o componente curricular Projeto de Vida e as eletivas. A partir da 2ª série, entram as Trilhas de Aprofundamento.
Em 2021, nós implementamos três cursos a partir do 5º itinerário de EPT. Nós temos hoje o curso de Administração, Química e Informática. 48 turmas já como piloto desde a 1ª série.
Apresentador: Com a larga experiência que ela tem na análise de políticas públicas em diversas áreas, a Gabriela Lotta aponta o risco do aumento de desigualdades sociais nesses processos em função das diferenças regionais. A saída são as políticas com ênfase na equidade, o que sempre depende de coordenação nacional. Ela faz um alerta relacionado a essa questão:
Gabriela Lotta: É como se a gente tivesse soluções que fossem quase padronizadas para o país inteiro. A gente já sabe, em 30 anos pós-Constituição nas áreas de saúde, educação e assistência, que soluções padronizadas para o Brasil inteiro só aumentam desigualdade. Não temos visto um trabalho efetivo do governo federal de reverter isso, e poucos estados têm trazido isso como uma preocupação central. Eu entendo isso, dado o momento da reforma. Quero dizer, eles estão de fato organizando muita coisa e é difícil prestar atenção em tudo, mas em algum momento as desigualdades têm que ser prioridade nessa discussão. Caso contrário, o efeito vai ser que os alunos que já estão em escolas mais vulneráveis vão ter acesso a menos escolhas, recursos e isso só vai aumentar as desigualdades.
Apresentadora: Além das potenciais desigualdades que podem decorrer da implementação de uma política pública, outro ponto a que se deve ficar atento é a continuidade das ações. Exemplo disso é a descoordenação que houve em função da pandemia e da crise econômica alegada pelo Ministério da Educação. Rita Jobim, coordenadora de Políticas de Ensino Médio do Instituto Unibanco, mostra como essa questão pode ser delicada:
Rita Jobim: O MEC ficou ausente dessa discussão e paralisado durante muito tempo. As redes, de fato, sofreram bastante atraso com essa falta de coordenação, por falta de direcionamento diante da pandemia. Na gestão anterior tinha-se avançado muito em relação a como pegar a Base Nacional Curricular e usá-la na confecção dos currículos e como considerar a partir daí tudo o que precisa ser feito na implementação (com modelo de plano de implementação, encontros entre técnicos estaduais para a troca de experiência…). Isso vinha sendo feito, foi paralisado nesta nova gestão e atropelado pela pandemia. Os estados tiveram que redirecionar suas equipes, esforços e energia. Sem uma orientação clara do MEC, isso afetou muito. Agora, bem recentemente, a gente tem visto o MEC mudando um pouco de ritmo e de posicionamento: ele está retomando isso e vai ser um apoio importante para as secretarias de Educação. Tem um convênio com o Banco Mundial que prevê alocação de técnicos tanto no MEC quanto nas secretarias de Educação, tem recursos para a implementação do EMTI (Ensino Médio em Tempo Integral), tinha o programa de apoio ao Novo Ensino Médio, que possibilitou a realização de alguns pilotos (depois isso não foi muito bem acompanhado nem os aprendizados a partir deles, mas é possível que isso seja retomado também). E a gente tem as políticas indutoras nacionais, o PLND, Programa do Livro Didático, e o próprio ENEM, que a gente sabe que é um grande indutor, ainda em definição.
Apresentador: O Artigo 205 tentou ouvir o Ministério da Educação, mas não obteve resposta às mensagens enviadas.
Apresentadora: A flexibilidade curricular do Novo Ensino Médio possibilita alguns arranjos capazes de ampliar as possibilidades de oferta de itinerários aos estudantes, como sinaliza a Rita Jobim, do Instituto Unibanco:
Rita Jobim: Há muitos municípios no Brasil com apenas uma escola de Ensino Médio e, às vezes, são escolas pequenas, com um número de alunos reduzido. Seria até difícil organizar turmas e professores, profissionais disponíveis para ofertar múltiplos itinerários ali dentro. Nesses casos, se houver outras escolas próximas (ainda que em outros municípios), mas que possa ser organizado um transporte que permita ao estudante se locomover, se deslocar para outra escola, esse é um arranjo possível. Mas o que eu tenho visto é uma solução na própria construção do currículo: se só tem uma escola, ela tem que ofertar pelo menos dois itinerários e pode fazer com que eles sejam integrados, que combinem duas áreas do conhecimento. De alguma forma, as quatro grandes áreas do conhecimento estariam ali ofertadas e complementadas por eletivas que possibilitassem ao estudante também circular por outros componentes, aprofundamentos, para além dos que compõem a carga flexível. É possível uma parte da oferta ser à distância, para o EPT tem se pensado em cursos de curta duração, nos quais o aluno possa fazer de forma complementar para compor a carga horária do 5º itinerário.
Apresentador: A incorporação da tecnologia às práticas pedagógicas de forma mais sistemática é outro fator que pode colaborar para assegurar a diversidade de opções aos estudantes. Mas, para isso, é preciso que haja investimentos, como lembra a Gabriela Lotta:
Gabriela Lotta: Eu acho que a gente venceu uma barreira muito importante, que é a barreira dos professores acharem que a tecnologia não combinava com o processo de aprendizagem. Agora, o quanto isso vai se reverter em algo estrutural para a rede, ou seja, o quanto ela vai aproveitar esse conhecimento acumulado durante a pandemia para avançar na adoção de medidas tecnológicas, aí é que eu não sei. Para pensar a inserção de tecnologia no Ensino Médio, acho que ela ajudaria muito especialmente na questão dos cinco itinerários e no aumento de possibilidades para os alunos acompanharem, por exemplo, aulas remotas que não vão ser ofertadas na escola deles. Isso é muito bacana. Mas para usar a tecnologia nesse cotidiano de maneira mais sistemática, a gente tem tanto que investir nisso em termos da oferta (a escola, o professor, o material didático…), como tem que avançar nisso na demanda, que é o aluno, a tecnologia e a internet. Se, por um lado, a gente avançou muito nas experiências na oferta (centro de mídia, capacitação de professor, criação de material on-line, portais), a gente avançou muito menos no lado do aluno. Eu tenho a sensação de que, da maneira como estamos hoje, não é possível assimilar a tecnologia de maneira sistemática por causa da falta de acesso dos alunos. A não ser que se invista, por exemplo, para que as escolas tenham salas de informática bem equipadas para os alunos assistirem a uma aula onl-ine que está passando em outra escola. Mas eu não tenho visto isso nos debates dos estados – eu posso estar perdendo esse debate, pode ser que ele esteja acontecendo, mas não está aparecendo nas nossas entrevistas por enquanto.
Apresentador: Como você viu, ainda tem muita água para rolar até que a gente saiba se as mudanças vão ter o efeito esperado para transformar o Ensino Médio. Uma coisa, no entanto, é certa: isso só vai acontecer se houver participação de todos.
Apresentadora: Se você quiser ouvir mais opiniões e saber outras informações sobre esse tema, acesse o canal do Instituto Unibanco no YouTube. Lá você vai poder assistir ao webinário “Desafios da implementação do Novo Ensino Médio”, além de ver outros conteúdos sobre gestão educacional.
Apresentador: Termina aqui mais um episódio do Artigo 205, o podcast em defesa do direito à educação. Se você ainda não ouviu o episódio anterior sobre o Ensino Médio, vale conferir no seu aplicativo de podcast.
Apresentadora: Obrigada por ficar com a gente até aqui!
Apresentador: O podcast Artigo 205 é uma produção da Rádio2 para o Instituto Unibanco. Tem a coordenação executiva e direção da Fabiana Altran. A produção e edição são da Patrícia Sperandio. Sonoplastia de Isaac França. Trilha sonora original de João Duval Rodrigues e Nicolas (?). A Marta Avancini e eu apuramos, entrevistamos, roteirizamos e apresentamos este episódio. Até a próxima!
Apresentadora: Até mais!