Artigo 205 – Episódio #6 – Um longo caminho para a equidade na educação
Sons de buzina e carros passando
Voz de menino 1: Qual o sabor? Qual o sabor?
Voz de homem adulto: Este aqui, ó.
Voz de menino: Qual o sabor? O um?
Voz de mulher adulta: Por que você parou de estudar?
Voz de menino 2: Por causa do começo da pandemia e para ajudar dentro de casa.
Voz de mulher adulta: Sua mãe faz o quê?
Voz de menino 2: Faz faxina.
Voz de mulher: Quais foram as dificuldades que vocês tiveram na pandemia?
Voz de menino 2: Muitas. Fechou comércio, não tinha mais como vender bala na rua, não tinha mais jeito de arranjar dinheiro. Aí nós precisamos morar na rua por três semanas. Daí depois eu voltei a trabalhar de novo vendendo bala e consegui pagar o aluguel, graças a Deus.
Voz de mulher: E você vai voltar a estudar?
Voz de menino 2: Vou, tia.
Voz de mulher: O que você pretende fazer da sua vida?
Voz de menino 2: Meu sonho é ser advogado, tia.
Apresentadora: O diálogo que acabamos de ouvir ilustra uma situação que se tornou mais comum do que gostaríamos no contexto da pandemia de Covid-19: o de adolescentes que abandonaram a escola porque se viram forçados a trabalhar para ajudar no sustento da família.
Nossa equipe foi às ruas de Copacabana, no Rio de Janeiro, conversar com jovens que trabalham vendendo balas nas esquinas. A maior parte deles mora na Baixada Fluminense e passa o dia no bairro da Zona Sul carioca até conseguir o dinheiro do mês. Só depois disso é que voltam para a casa. Eles aceitaram falar com a gente, mas pediram para não serem identificados.
Voz de menino 3: Eu sou estudante, estou no 9º ano do Ensino Fundamental e venho aqui para Copacabana para trabalhar no dia em que não tem aula para poder ajudar a minha família dentro de casa. Minha mãe é sozinha, tenho três irmãos e nessa pandemia está muito difícil. Eu sou o mais velho da casa e tenho que correr atrás para ajudar minha mãe, que, além de tudo, merece tudo do mundo.
Apresentador: Embora histórias como as desses garotos tenham ganhado visibilidade no cenário da pandemia de Covid-19, elas não são novas. Estão vinculadas a um problema de fundo que marca a sociedade brasileira e tem relação de causa e efeito na educação do país: a desigualdade socioeconômica. Essa tem sido uma das maiores barreiras para se alcançar a equidade na educação, como vamos acompanhar neste episódio do Artigo 205.
Apresentadora: Olá, eu sou a Marta Avancini.
Apresentador: E eu sou o Rubem Barros.
Apresentadora: Muitas pesquisas revelam que a educação brasileira é marcada por vários tipos de desigualdades, afetando o acesso, a permanência e a aprendizagem de milhões de crianças e adolescentes. As desigualdades são de vários tipos: de moradia, alimentares, de acesso a bens de consumo, à internet… E elas afetam de forma diferente vários grupos sociais, como negros, índios, mulheres, crianças e idosos.
Um estudo recente do economista Ricardo Paes de Barros concluiu que crianças pobres, negras e nordestinas chegam a se alfabetizar até um ano mais tarde do que crianças ricas e de outras regiões do país.
Apresentador: Em outra pesquisa, o Paes de Barros mostrou que quanto maior o grau de vulnerabilidade, pior o desempenho em Matemática no Saeb do 5º ano do Ensino Fundamental. O Saeb é o Sistema de Avaliação da Educação Básica. A pesquisa compara alunos brancos, que moram na região Sul e têm pais com escolaridade completa e meninas negras, moradoras do Nordeste do Brasil, com pais analfabetos e família com condição socioeconômica precária. Entre os alunos brancos, 35% atingem pelo menos o nível básico no Saeb. Já entre as meninas negras, somente 5% delas chegam a esse patamar. Essas discrepâncias persistem com leve melhora dos indicadores educacionais nos últimos anos.
A Pnad de 2019, por exemplo, mostra que, em dois anos, o percentual de pessoas que concluíram pelo menos o Ensino Médio passou de 46,2% para 46,4% — um avanço tímido, a gente pode chamar assim, né?
Apresentadora: É verdade, Rubem, que esse é um dado positivo. Mas quando a gente analisa o recorte por raça, a Pnad mostra que a taxa de conclusão entre os brancos é de quase 56%. E quando a gente olha para os pretos e pardos, ela fica na faixa dos 43%. E aí vem a pergunta: como a gente explica tanta diferença? E de onde vem tanta desigualdade?
No Brasil, a educação é um direito de todos, como está escrito na Constituição. Aliás, isso está escrito no artigo que dá nome a este podcast, o Artigo 205.
Alexsandro Santos: A gente estabeleceu no Brasil o direito à educação a partir de um conjunto de camadas de exclusão. A história da escola no Brasil é a história de processos de exclusão e de inclusão. Se a gente retomar a história da escola brasileira, a gente vai entender que durante todo o século XIX, por exemplo, essa escola estava destinada apenas às pessoas brancas, porque as pessoas negras, durante quase todo o século XIX, viviam ou sob a condição de escravizadas ou, ainda que elas fossem livres, o direito de elas frequentarem a escola era muito inseguro.
Apresentador: Esse que nós ouvimos é o educador e pesquisador Alexsandro Santos, diretor-presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo. Segundo ele, as barreiras enfrentadas pelos negros no acesso à educação mudaram de configuração no século XX, mas não deixaram de existir.
Alexsandro Santos: O veto à presença das pessoas negras no sistema escolar brasileiro continuava presente não mais por uma questão local, mas por uma questão objetiva das condições materiais do sistema escolar no Brasil. É um sistema escolar que, ao longo do século XX, era caracterizado por um número de vagas inferior ao que era preciso e, portanto, um mecanismo seletivo de quem entrava. Além disso, quando foi se expandindo, se expandiu com uma qualidade hierarquizada.
Apresentadora: Um desses mecanismos de seleção era o chamado exame de admissão, usado para selecionar os estudantes que teriam direito a ingressar no ginásio, o nível equivalente ao chamado Ensino Fundamental II. Esse exame foi introduzido na Reforma Francisco Campos, em 1931, e vigorou até 1971, ano de uma reforma da LDB que introduziu os ensinos de primeiro e segundo graus.
Carlos Roberto Jamil Cury, hoje professor-adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e uma das maiores autoridades em termos de legislação educacional do Brasil, teve de enfrentar essa barreira após terminar o ensino primário. É ele quem relembra a situação:
Carlos Roberto Jamil Cury: Uma guilhotina dentro do sistema de ensino. Esse era o chamado exame de admissão. Então o que acontecia: embora a instrução primária, o ensino primário, como então se chamava, fosse gratuito e obrigatório pela Constituição de 1946, na regulamentação, que ainda vinha das leis orgânicas de Gustavo Capanema, tinha esta determinação: o sujeito, para entrar no ensino secundário, que então era o que nós poderíamos chamar hoje de os ensinos finais do Ensino Fundamental, havia um exame. E esse exame de admissão era muito rigoroso porque tomava todo o conteúdo que o aluno ou a aluna havia aprendido ao longo dos quatro primeiros anos, mas, mesmo que ele passasse, havia uma classificação de acordo com o número de vagas que houvesse no chamado ginásio.
Apresentadora: E o corte era essencialmente econômico, pois aqueles que ingressavam no ginásio eram justamente os filhos das famílias com melhor condição econômica.
Carlos Roberto Jamil Cury: Eu dou o meu exemplo: eu fiz cursinho para exame de admissão. Imagina, um menino de dez anos fazendo cursinho para o exame de admissão. Passei com certa dificuldade, mas passei. Muitos dos meus colegas que não fizeram cursinho não puderam. Então eles fizeram o que? Foram trabalhar no comércio e eu prossegui nos estudos. Aí você tem uma distinção muito grande, uma desigualdade muito grande e até mesmo uma discriminação.
Apresentadora: A experiência pessoal de Jamil Cury remete a uma característica do sistema educacional brasileiro que funciona como um dos principais fatores que alimentam as desigualdades educacionais: a coincidência entre as chances de socialização por meio da escola e uma estrutura familiar mais sólida, com acesso a moradia e renda.
Carlos Roberto Jamil Cury: A escola tinha uma expectativa do aluno que havia passado no exame de admissão que era preenchida pela socialização familiar daquele menino e vice-versa. Então aí você tem um primeiro elemento importante: é claro que quando você tem uma socialização familiar que é simétrica a uma socialização escolar, é óbvio que isso acaba dando certo. Você tem uma trajetória que, aos poucos, vai elitizando e, por isso, se dizia que a escola tinha grande qualidade. Ela tinha qualidade? Tinha, mas para um grupo menor que conseguia entrar no ginásio, depois no colegial e, eventualmente, fazendo cursinho, passando nos rigorosos exames vestibulares, para entrar no ensino superior.
Apresentador: Com o fim da ditadura militar e passados os tumultuados anos iniciais do período democrático, com inflação alta e crises políticas, o Brasil começou na década de 1990 do século passado a atacar as diversas inequidades sociais que acumulou ao longo de sua história. Em 1995, Fernando Henrique Cardoso lembrou o complexo sistema brasileiro de proteção social em seu discurso de posse para seu primeiro mandato como presidente do Brasil:
Som de fita rebobinando.
Fernando Henrique Cardoso: Vamos assegurar, com energia, direitos iguais aos iguais. Às mulheres, que são maioria do nosso povo e às quais o país deve respeito e oportunidades de educação e de trabalho. Às minorias raciais, algumas quase maiorias, aos negros, principalmente, que espero que igualdade seja mais do que uma palavra, seja o retrato de uma realidade…
Apresentador: Oito anos depois, Luiz Inácio Lula da Silva assume o governo com o desafio de tornar a sociedade brasileira mais justa e igualitária:
Som de fita rebobinando.
Voz de Luiz Inácio Lula da Silva: Se conseguirmos voltar a andar em paz em nossas ruas e praças, daremos um extraordinário impulso ao projeto nacional de construir nesse rincão da América um bastião da tolerância, do pluralismo democrático e do convívio respeitoso com a diferença.
Apresentador: Hoje superintendente do Instituto Unibanco, Ricardo Henriques, um economista com atuação voltada às áreas sociais e passagem pelo MEC como responsável pela Secad, a antiga Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, relembra a importância das políticas públicas adotadas a partir do início deste século, que resultaram na diminuição da desigualdade social.
Ricardo Henriques: Ao longo dessas duas décadas do século, nós melhoramos tanto na redução da pobreza absoluta e da pobreza como na desigualdade. A gente viu queda da desigualdade e da renda, por exemplo, vertiginosas até 2015. Se a gente for considerar o índice de Gini, que é um bom indicador, a gente estava em meados dos anos 1990 no patamar de 0,60 (quanto maior o índice Gini, pior a desigualdade). No início dos anos 2000, fomos a 0,58 e chegamos em 2015 a 0,52. Essa queda de meio ponto no Gini é bastante significativa do ponto de vista da nossa história e da realidade internacional. O que acontece é que após 2015 a gente vê uma retomada dessa desigualdade. Nós perdemos a capacidade de o trabalho informal ser um certo colchão de amortecimento dessa crise de renda e, como sabemos, além do fenômeno mundial da pandemia, com o fechamento de várias atividades econômicas, também tivemos um descaso, um desgoverno, do ponto de vista da orientação do governo federal, que agravou as condições de renda como um todo e aumentou, o que mais importa para a análise, a pobreza extrema em uma intensidade que nós nunca vivemos. A insegurança alimentar está em níveis devastadores e com volume de população na miséria gigantesca.
Apresentador: Um aspecto que torna mais complexa a desigualdade no Brasil é o fato de ela ser multidimensional, ou seja, a desigualdade socioeconômica se sobrepõe a outras, como a região do país onde a pessoa mora e o fato de se viver no campo ou na cidade — além da raça e da etnia de cada um. Tudo isso foi agravado pela pandemia e impactou a educação, especialmente no Norte e no Nordeste do país, onde os indicadores tendem a ser piores do que em outras partes.
Zilene Trovão: É muito séria a desigualdade educacional que vem da desigualdade social. Com a pandemia, ela agravou muito, demais mesmo. Isso é muito preocupante. A gente teve cenas catastróficas. Foi horrível. Mas eu acho que a secretaria que mais trabalhou foi a de educação, mesmo, que ajudou até mais do que a saúde. A saúde estava o caos.
Apresentadora: Essa é a Zilene Trovão, gestora do Cime Professor Dr. José de Aldemir de Oliveira, que é o primeiro dos sete complexos de educação integral previstos para atender os alunos da rede municipal de Manaus. Inaugurado um mês antes do início da pandemia de Covid-19, o Cime fica na Zona Leste da cidade, no limite da zona urbana com a rural. Ele está inserido em uma comunidade de alta vulnerabilidade social e atende estudantes da Educação Infantil ao Ensino Fundamental II. Por lá, a desigualdade social é enorme. Os estudantes estão expostos a vários tipos de riscos sociais e as famílias vivem em uma área violenta, de difícil acesso, em casas de madeira, de lona, no chão batido, mesmo.
Zilene Trovão: Nas invasões, tem parte que não tem luz, não tem água. A parte da zona rural também, é até um horário. Tem região que não pega por causa dos terrenos de lugares de difícil acesso. Na escola a gente tem muita dificuldade com a internet. Na pandemia a gente foi atingido diretamente, mesmo.
Apresentadora: A escola foi criada com o objetivo de trabalhar segundo uma concepção de educação integral e democrática. O eixo norteador são os direitos humanos e a educação popular.
Zilene Trovão: Ela é uma escola muito grande, com capacidade para 1.600 alunos. A gente está com 1.300 e pouco, porque alguns não voltaram. A gente está 100% presencial e percebemos quantos alunos a gente perdeu. E olha que nós fizemos busca ativa…
Apresentadora: Foi a partir desse trabalho que a equipe escolar enxergou que, naquele momento, a necessidade dos alunos e familiares não era somente o acesso à internet ou à energia elétrica para acompanhar as aulas remotas. Eles precisavam de muito mais, como conta Zilene.
Zilene Trovão: Foi uma situação bem desesperadora, mesmo. Chegou um tempo que eles queriam ajuda de médico, que não tinha vaga nos hospitais, não tinha mais assistência funerária… Quando a gente fazia as assembleias, eram professores muito abalados emocionalmente também. E, de certa forma, a gente começou a fazer uma busca ativa sem estar obedecendo o decreto. A gente conseguiu fazer um trabalho socioeducacional muito bom. Muito triste, muito sofrido… Foi muito dolorido, foi muito traumatizante para a gente. Tinha coisa que a gente conseguia e tinha coisa que não.
Apresentador: Entre todas as assimetrias que atrapalham a educação brasileira, o racismo é um dos aspectos mais gritantes. Ele atravessa e potencializa outros contextos que também afetam a escolarização dos mais vulneráveis. Para o Alexsandro Santos, a desigualdade racial na educação se assenta em quatro pilares: acesso, permanência, aprendizagem e currículo. O currículo tem pouca abertura para as questões étnico-raciais. Juntos, esses quatro itens criam um cenário que potencializa as vantagens dos brancos sobre os negros. Chama a atenção que esse tipo de discrepância ocorre inclusive entre estudantes de uma mesma faixa de renda, o que revela o peso do racismo na produção e perpetuação das desigualdades.
Alexsandro Santos: Quando eu pego, por exemplo, os 10% mais pobres da sociedade brasileira e comparo as crianças, adolescentes e jovens brancos desse grupo com as crianças, adolescentes e jovens negros desse grupo, eu vou identificar que a chance de uma criança de cor preta, por exemplo, concluir o Ensino Médio e a chance de uma criança branca desse grupo socioeconômico é muito diferente. A escola pública brasileira tem um problema na garantia da equidade do acesso e da permanência na escola quando a gente olha crianças negras e crianças não negras. Mas a qualidade não se explica só no acesso e na permanência, tem um outro requisito de qualidade que tem a ver com a aprendizagem.
Apresentador: No campo da aprendizagem, um estudo recente do Instituto Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional, realizado com base no Saeb, ajuda a entender as discrepâncias de aprendizagem. A pesquisa mostra que, no 5º ano do Ensino Fundamental, a diferença entre o desempenho das crianças pretas e das crianças brancas é equivalente a dois anos de escolaridade, ou seja, é como se as crianças pretas tivessem o nível esperado para o 3º ano do Ensino Fundamental, enquanto as crianças brancas atingiriam o 5º ano.
Alexsandro Santos: Então veja, a gente está começando a escolarização, as crianças têm dez anos de idade e eu já tenho esse padrão de desigualdade de aprendizagem quando eu comparo a criança preta e a criança branca. Os pardos estão no meio do caminho: eles não chegam a ter o desempenho das crianças brancas, mas não têm um desempenho tão abaixo do desejável quanto as crianças pretas. No pilar aprendizagem, a escola brasileira também tem um problema sério em termos de equidade. Também tem um problema sério na entrega do direito à educação de qualidade.
Sons de jovens conversando.
Apresentador: Não bastassem os fatores externos, há ainda as dinâmicas próprias da escola que alimentam a exclusão racial. A cultura escolar é atravessada por mecanismos que tendem a criar empecilhos ou mesmo bloquear o acesso e a permanência de crianças negras. Um exemplo dessas práticas são as supostas brincadeiras, piadas de cunho racista que nem sempre são vistas dessa forma no ambiente escolar. A baixa expectativa em relação ao desempenho acadêmico das crianças negras é outro aspecto dessa cultura escolar.
Apresentadora: Mas ao mesmo tempo em que a escola produz o racismo, ela pode também funcionar como um espaço de conscientização e valorização da diversidade. Maria Eduarda, de 17 anos, é aluna do 3º ano do Ensino Médio da Escola Profª. Luiza Marinho, que fica na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Ela se reconhece hoje como negra não retinta e, para quem não é familiarizado com o termo, a Duda, como ela é chamada, é uma menina negra de tom de pele clara. Segundo ela, foi só a partir da sua participação em um projeto cultural da escola, já no 1º ano do Ensino Médio, que ela conseguiu entender melhor as questões ligadas à sua raça.
Maria Eduarda: É uma imagem muito forte que eu vou levar para a minha vida desse projeto. Eu aprendi muito da cultura da africana, dando como exemplo agora a dança do jongo, também aprendi muito sobre a religião dos orixás, a gente fez uma apresentação linda… Esse projeto vai ser significar muito quando for pensar na escola.
Apresentadora: Antes de participar do projeto cultural na escola, porém, a Duda não só desconhecia a cultura de origem africana como também não sabia valorizar a sua identidade.
Maria Eduarda: A Duda de antes não tinha muito conhecimento, talvez, não se valorizava tanto, não se reconhecia tanto. Eu falo sobre meus traços, sobre raízes do meu cabelo… São coisinhas básicas, mas que fazem uma diferença muito grande. Depois que eu entrei nesse projeto, que eu pude conhecer pessoas, minha cultura, minha arte, minhas origens… Eu acho que agora eu sei me valorizar mais, sei quais são os ambientes, sei reconhecer quando sou valorizada e quando não sou valorizada. Eu tenho a minha saúde mental.
Apresentadora: Maria Eduarda vive com os pais e os dois irmãos na comunidade da Palmeirinha, em Guadalupe, também na Zona Norte do Rio. Ela conta que os dois sempre a incentivaram a estudar e que ela espera conseguir cursar uma faculdade de Psicologia.
Maria Eduarda: Eu não me sinto preparada para uma faculdade pública, mas eu vou fazer o Enem agora e, dependendo do resultado dele, aí a gente vai ver.
Apresentador: A escola pode desempenhar um papel relevante no enfrentamento das desigualdades, mas sua superação depende de políticas públicas consistentes. Nesse sentido, o Brasil ainda tem um percurso a fazer, apesar de a legislação educacional ter como norte o direito de todos à educação, como enfatiza o professor Jamil Cury.
Carlos Roberto Jamil Cury: Nós temos um outro elemento que perpassa toda essa época, dos anos 50 para cá, que é justamente o que eu costumo chamar de continuidade da descontinuidade. Você tem seguidamente a rotatividade dos governos, eleitos ou não, em que cada um novo que entra se julga o marco zero da história. E o que veio antes dele não presta. No interior do sistema educacional, você tem uma descontinuidade que é muito prejudicial ao processo de ensino-aprendizagem, portanto, a permanência dos estudantes na escola.
Apresentador: Aliada à colaboração entre os entes federativos, a continuidade das políticas públicas foi um dos fatores que permitiram que o estado do Ceará tivesse uma evolução expressiva no Ideb, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, entre os anos de 2005 e 2019. O estado saiu de 2,8 no Fundamental I e no II e passou para 6,3 e 5,2, respectivamente.
Se o racismo é um problema histórico presente em todo o Brasil, seu peso não é igualmente distribuído em todo o país. No caso do Ceará, as políticas públicas para diminuir as desigualdades tiveram um foco diferente: na equidade. Isso se explica pelo fato de o estado ter o menor percentual de pessoas que se declaram negras em todo o Nordeste, segundo dados do IBGE. Esse número está em torno de 5%, contra 22% da Bahia, por exemplo. Já o número de pardos alcança os 65%. Hoje vice-governadora, Izolda Cela foi secretária de educação de Sobral e do estado do Ceará entre 2001 e 2014. Ela foi uma das pessoas responsáveis pela introdução e continuidade de políticas educacionais, que levaram o estado a obter bons índices educacionais contra a desigualdade. Izolda conta para a gente a visão que permeou a sua atuação:
Izolda Cela: Quando eu me reporto para o que nós encontramos lá em 2001 em Sobral, na rede públicas, nas escolas públicas de Sobral, foi ali minha primeira experiência e meu primeiro encontro, como eu digo, com a escola que não ensina. Uma escola que convive, que assiste e que se sente impotente, inclusive, com relação ao fracasso das crianças. A começar da alfabetização, porque nós tínhamos todo um circuito de indicadores muito ruins. Distorção idade/série, abandono altíssimo, insuficiência nas diversas áreas de infraestrutura e pessoal… Tudo isso. E tínhamos o carro-chefe dessa história toda que era o analfabetismo. O fato de as crianças não conseguirem aprender a ler é uma situação que nos convocou, desde o início, a ter como princípio a busca da igualdade.
Apresentador: Para enfrentar alguns desses problemas na educação, o Ceará adotou a estratégia de convocar os estudantes a fazer busca ativa de seus colegas. Eles recebem uma bolsa de R$ 200 mensais para trazer de volta os evadidos.
Izolda Cela: É sempre importante quando a gente consegue fazer chegar no bolso dessa moçada um dinheirinho, especialmente quando esse dinheiro vem por uma boa ação que eles prestam, por um bom serviço. É o engajamento deles, porque nessa ideia de que tem uma força entre os pares que precisa ser mais bem aproveitada. Sempre que nós conseguimos olhar para eles como agentes importantes de toda aquela história deles e de seus pares, da sua escola, da sua comunidade, eu penso que nós podemos ter surpresas muito boas.
Apresentador: O momento crítico, no entanto, pode fazer com que as ações passem a adotar critérios que deem mais atenção às questões étnico-raciais.
Izolda Cela: Nós nunca tivemos um filtro com relação a essa coisa do perfil de pessoas, de raça, por exemplo, estudantes negros ou indígenas. Nós sempre tivemos essa lógica de perseguir a equidade (esteja onde estiver, seja como for), mas eu penso que deve ser um débito nosso ter um filtro mais qualificado com relação a essa questão de segmentos populacionais.
Apresentadora: Pensando principalmente em compensações para a questão racial, mas não somente para elas, Alexsandro Santos traz uma série de propostas de ações afirmativas. Algumas delas já estão implantadas, como a obrigatoriedade curricular de conteúdos da história afro-brasileira. Outras, em contrapartida, dialogam com experiências já existentes para estudantes, como a introdução de cotas para a contratação de professores negros em concursos públicos. Outras ideias parecem ter potencial ainda maior de mudança:
Alexsandro Santos: Se eu já sei quais são as escolas da minha rede que, pela sua localização socioespacial, atendem em maior medida as crianças negras, uma medida de equidade é na hora de distribuir os recursos da rede: priorizar, alocar recursos adicionais naquelas escolas que têm maior frequência de estudantes negros e negras. A escola precisa ter serviços de apoio para as crianças que começam a dar sinais de que não estão aprendendo no terceiro mês de aula. Em geral, a cultura escolar brasileira é empurrar esse apoio lá para o final do ano, quando pouco se pode fazer pela aprendizagem. Esse tipo de ação afirmativa aparentemente não tem recorte racial, mas é só aparentemente, porque quando a gente olha as crianças que vão ficando para trás na escola, elas têm cor e elas têm um determinado padrão socioeconômico.
Apresentadora: Se as desigualdades sociais e educacionais brasileiras já eram enormes antes de 2020, a pandemia só fez com que elas se acentuassem ainda mais. Por isso, é necessário estabelecer uma estratégia para que a reconstrução nos traga configurações mais avançadas no campo da educação, como defende Ricardo Henriques.
Ricardo Henriques: Que se projete uma estratégia pedagógica, creio que com uma janela de três, quatro ou cinco anos, que dê conta de ter uma cauda longa também de enfrentamento das várias dimensões que foram mobilizadas a partir do período da pandemia em que comprometeram o ciclo do ensino e da aprendizagem de uma quantidade enorme de estudantes e, evidentemente, comprometeu muito mais para aqueles estudantes mais vulneráveis, os estudantes periféricos, para os estudantes negros, do mundo rural, dos indígenas. Portanto, é necessária uma estratégia de média duração para enfrentar as consequências do período de suspensão das aulas e reposicionar a trajetória da educação não só nos trilhos, mas de forma acelerada para dar conta de reduzir as desigualdades.
Apresentador: Está aí o desafio: criar, implementar, manter e melhorar políticas públicas que ajudem o país a incorporar toda a sua população entre os beneficiários dos direitos educacionais e humanos.
Apresentadora: Se você quiser saber mais sobre esse e outros temas ligados à educação e à gestão educacional, acesse os canais do Instituto Unibanco, que oferecem análises, dados e webinários sobre o sistema educacional.
Apresentador: Esse episódio do Artigo 205, um podcast em defesa do direito à educação fica por aqui. Os trechos dos discursos das cerimônias de posse dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, ocorridas respectivamente em 1995 e 2003 foram retirados do YouTube.
Apresentadora: Toda quarta-feira tem um novo episódio nos principais tocadores de podcast e no canal do Instituto Unibanco no YouTube, acompanhe.
Apresentadora: o podcast Artigo 205 é uma produção da Rádio 2 para o Instituto Unibanco, com a coordenação executiva e direção da Fabiana Altran. A produção e edição são da Patrícia Sperandio com o apoio da Cláudia Oliveira. Sonoplastia de Isaac França. Trilha sonora original de João Do Val Rodrigues e Nicolas Rabinovitch. Identidade visual é assinada por Bonita Produções. O Rubem Barros e eu apuramos, entrevistamos, roteirizamos e apresentamos este episódio. Até o próximo!
Apresentador: Até!