O uso de evidências em tempos de tomada de decisão
*Por Leonardo Gryner, pesquisador do CRIE e executivo com experiência na condução de projetos de grande complexidade
Nos tempos de Covid19 estamos assistindo à uma série de manifestações e afirmações sobre como enfrentar, tratar ou prevenir a pandemia. O acompanhamento é constante para identificar qual o impacto nas economias e seus efeitos correlatos nos diversos países afetados. Em sua grande maioria, essas manifestações, quando infundadas, geram impactos negativos que poderiam ter sido evitados se uma abordagem mais estruturada na tomada de decisão tivesse sido adotada.
O uso de evidências para a tomada de decisões soa óbvio. Não esperamos que estas sejam feitas a partir de opiniões pessoais ou de “achismos”. Quando lidamos com problemas desconhecidos ou sobre os quais não temos uma opinião formada ficamos mais abertos ao uso de evidências para fundamentar as nossas decisões.
No entanto, quando temos uma opinião formada sobre o assunto, a nossa decisão fica contaminada e tendemos a não considerar evidências. Passamos a privilegiar as nossas opiniões e buscar apenas evidências que comprovem as nossas crenças, mesmo que existam evidências que demonstrem o contrário.
Desde a década de 1980, Dr. David M. Eddy, fundador da Archimedes Inc. (empresa de modelagem de serviços de saúde em São Francisco (EUA) menciona em suas palestras e workshops o termo “uso de evidências”. Este movimento tomou força em 1992 quando foi divulgado o Manual do Conselho das Sociedades de Especialidades Médicas nos EUA. Este manual apresentou contraposição às “práticas de cuidados padrão” e/ou as opiniões de especialistas.
Dr. Gordon Guyatt atuava na coordenação de residência da Universidade de MacMasters na cidade de Hamilton, no Canadá quando publicou um trabalho em 1992 concebendo pela primeira vez o termo evidence based medicine (uso de evidências em medicina). Naquela época o uso de métodos científicos em pesquisas biomédicas e análises estatísticas em epidemiologia eram raros. Dr. Guyatt hoje é eminente professor do Departments of Health Research Methods, Evidence and Impact (HEI).
Em 2007, o British Medicine Journal (BMJ) conduziu uma pesquisa internacional para eleger as mais importantes contribuições para área de saúde, e a “medicina baseada em evidência”, foi eleita em sétimo lugar, à frente de computação e diagnóstico por imagem. O uso de evidência se espalhou para as demais áreas da medicina e posteriormente para outras atividades humanas, como educação e gerenciamento de organizações.
No início deste milênio foi fundado o Centro para o Gerenciamento Baseado em Evidências – Center for Evidence-Based Management, com sede na Holanda (CEBMa). É uma organização sem fins lucrativos, que se propõe a divulgar a prática do uso de evidência nos campos de gestão empresarial e liderança. Para o CEBMa o uso de evidências refere-se a prática da tomar decisões através do uso meticuloso, explícito e criterioso das melhores evidências disponíveis, obtidas de múltiplas fontes, para aumentar a probabilidades de se obter um bom resultado. Para o entendimento da prática é necessário alinhar alguns conceitos, como:
- Uso meticuloso – significa que a pesquisa com o uso das evidências deve ser meticulosa. Não deve se restringir as evidências disponíveis ao “alcance das mãos”. É importante que se faça uma pesquisa extensiva para o levantamento das evidências. A pesquisa deve estar adequada ao tempo disponível, ou à dificuldade de se encontrar evidências corretas para a decisão que precisamos tomar ou até mesmo por não existirem evidências disponíveis.
- Uso explícito – na prática, para uso de evidências, é necessário ser explícito, ou seja, saber informar em detalhes quais as evidências que foram consideradas, e qual o seu contexto. Este detalhamento permite a verificação da conformidade dessas evidências em relação ao problema que está sendo analisado. Adicionalmente, o uso explícito significa que devemos saber citar e explicar as evidências utilizadas. Não vale simplesmente afirmar, por exemplo: “eu sei que é assim”, ou “isso é óbvio”, ou “não precisa ir muito longe para saber que é assim”.
- Uso criterioso – Hoje em dia somos facilmente expostos a um conjunto enorme de informações sobre qualquer assunto. Neste mar de dados temos muito ruído, muitos dados não são confiáveis e outros são inverdades. É necessário realizar uma avaliação crítica das evidências ou da qualidade das informações levantadas.
Grupos de fontes
O CEBMa formalizou uma estrutura para aplicação desta prática, sendo uma das etapas mais relevantes a definição das fontes, ou seja, onde devemos buscar as evidências que vão permitir a escolha das melhores estratégias, ações ou intervenções para solucionar o problema. O CEBMa sugere quatro grupos de fontes.
- Grupo 1 – refere-se aos trabalhos publicados, científicos ou não. Os artigos devem mencionar claramente o contexto, a prática utilizada e os resultados obtidos. Hoje em dia já existem alguns bancos de dados de evidências para consulta das organizações, listados a seguir:
- Science for work – foco em gestão empresarial;
- CEBE – foco em educação;
- What Works Clearinghouse – foco em educação.
- Grupo 2 – refere-se a dados existentes dentro da organização. Experiências vividas pela organização que foram devidamente registradas facilitando a identificação do contexto, a prática utilizada e os resultados obtidos.
- Grupo 3 – refere-se às experiências dos profissionais da organização ou especialistas de fora da organização, ao longo de suas carreiras. Como no grupo 2, devemos priorizar as experiências sobre as quais se conhece o contexto, a prática utilizada e os resultados obtidos.
- Grupo 4 – refere-se os valores e preocupações das partes interessadas envolvidas no problema e seus impactos. As partes interessadas podem ser clientes, fornecedores, parceiros de negócio, investidores, colaboradores da organização e da comunidade, fora da organização, afetada pelo problema. As partes interessadas terão prioridades diferentes. Por exemplo: pode-se atribuir maior ou menor importância a ganhos de curto prazo e sustentabilidade, bem-estar dos colaboradores ou sua produtividade, reputação organizacional, lucratividade e participação ampla nas decisões. Coletar evidências de partes interessadas é importante não apenas por razões éticas. Entender os valores e preocupações das partes interessadas fornecerá informações importantes sobre a maneira que as decisões serão percebidas e as chances de sucesso das decisões que serão tomadas.
E, finalmente, a estrutura do CEBMa orienta como buscar as evidências junto a essas fontes, de forma a garantir que o uso seja meticuloso, explícito e criterioso. Esta estrutura tem um ciclo similar a um PDCA:
- Perguntar – transformar os problemas em perguntas que ajudem a endereçar as questões. Por exemplo, se temos um problema de evasão escolar, podemos “traduzir” este problema em perguntas como: A idade dos alunos tem impacto na evasão? O local em que os estudantes moram tem impacto na evasão? O histórico escolar tem impacto na evasão?
- Pesquisar – pesquisar junto aos grupos de fontes, evidências que tiveram bons resultados, assim como experiências que deram errado e devem ser evitadas. Esta pesquisa deve ser meticulosa.
- Avaliar as evidências levantadas – avaliar de forma crítica a validade das evidências coletadas e sua aderência ao problema que se quer resolver e sua aplicabilidade no contexto do problema em questão.
- Agregar – combinar as boas evidências encontradas atribuindo um peso para cada uma delas.
- Aplicar – utilizar as evidências coletadas e priorizadas durante o processo de tomada de decisão.
- Avaliar o uso da estratégia ou intervenção – analisar o resultado da decisão com base no uso das evidências.
E como lidar com as inovações? Situações onde não existem experiências anteriores? Nestes casos devemos registrar a experimentação para que ela possa se transformar numa evidência para uso posterior. Por exemplo devemos responder formalmente:
Em seguida devemos descrever detalhadamente a prática, a estratégia ou a intervenção que está sendo testada. Ao final do experimento, apresentar detalhadamente os resultados e como os processos, produtos/serviços e as pessoas foram impactadas e demais resultados observados.
Finalmente, pode parecer que uma estrutura tão extensa e detalhada só se aplicaria no caso de problemas com uma certa magnitude em que a relação custo versus benefício fosse positiva. Na verdade, os princípios do uso de evidências podem ser aplicados em problemas de menor complexidade ou mesmo corriqueiros, empregando esforços compatíveis com os resultados almejados. Por exemplo:
- Levantamento de documentos ou publicações sobre determinado assunto com visões favoráveis e opostas. Priorize essas evidências às opiniões pessoais.
- A pesquisa das evidências deve ser realizada junto a grupos de fontes diferentes. Quanto maior a diversidade das fontes de pesquisa e de pessoas ouvidas, maiores as chances de sucesso. Verifique a confiabilidade das fontes.
- Busque sempre acompanhar e avaliar os resultados. O uso de evidência precisa ser incentivado pela alta direção da organização para evoluir e penetrar na cultura das organizações.
Mudar o processo de decisão abandonando as opiniões pessoais ou práticas enraizadas para adotar o uso de evidência, não é uma mudança trivial. E, torna-se mais difícil em ambientes altamente hierarquizadas. Uma cultura organizacional colaborativa e com diversidade facilita o processo de uso de evidências e são considerados pré-requisitos importantes para o sucesso desta prática.
REFERENCIAS
Center for Evidence-Based Management. Disponível em: https://cebma.org
EDDY, D.M. (1992). A Manual for Assessing Health Practices and Designing Practice Policies. American College of Physicians. ISBN 978-0-943126-18-0
GUYATT, Gordon et al. Evidence-based medicine: a new approach to teaching the practice of medicine. Jama, v. 268, n. 17, p. 2420-2425, 1992. Disponível em: https://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.684.3783&rep=rep1&type= pdf
VIRTUAL MENTOR. 2011;13(1):55-60. Disponível em: https://journalofethics.amaassn.org/article/origins-evidence-based-medicine-personal-perspective/2011-01
*Este artigo foi publicado na edição n.42 da revista Inteligência Empresarial, do CRIE.