Você sabe quem é Aqualtune? Aqualtune foi a filha do Rei do Congo e que liderou no século 17 uma batalha, do qual saiu derrotada. Foi vendida como escrava reprodutora para o Brasil, onde foi sistematicamente estuprada. Entre os filhos que gerou, sagrou-se mãe de Ganga Zumba, Gana e Sabina, essa última mãe de Zumbi dos Palmares. Aqualtune liderou a fuga para Palmares, onde depois seria morta queimada viva pelos bandeirantes paulistas.

Há cerca de quatro anos, quando tomaram conhecimento dessa história por meio do Portal Geledés, as professoras Natalia Romão e Rosália Romão, irmãs e “parceiras em tudo”, negras, nascidas e residentes em Campo Grande, bairro do extremo da Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ), viram que era preciso trazer personalidades como Aqualtune para sala de aula.

“A a ideia era através dela [Aqualtune] “positivarmos” as identidades negras no espaço escolar”, explica Rosália. “A gente vê que tem  toda uma estrutura que nega a existência positiva de mulheres negras e nós também pudemos perceber, através das nossas histórias pessoais, dos referenciais que temos na nossa casa, na nossa família, nossas avós”.

Rosália (à esq.) e Natália em entrevista ao Instituto Unibanco

O projeto-pesquisa consistiu na realização ao longo de 2019 de uma série de oficinas e rodas de conversa junto a um grupo de Ensino Médio regular noturno do CIEP Helio 435 Pelegrino, em Campo Grande, onde Rosalia leciona História. Com a anuência da direção da escola, Rosalia implementou o projeto no CIEP e dividiu a sua condução com Natalia, que conciliou as atividades com seu trabalho como professora de Lingua Portuguesa da rede privada. Além de Aqualtune, também foram trabalhadas as biografias de Maya Angelou, Conceição Evaristo e Maria Carolina de Jesus.

Violência e sexualidade masculina

As trajetórias dessas autoras levantaram debates e reflexões distintas no grupo. A roda sobre Maya Angelou, por exemplo, em que foi exibido o documentário sobre a escritora, a questão da violência esteve no centro da fala das alunas.

“As meninas começaram a olhar mais para o corpo delas, perceber algumas violências que elas sofreram ao longo da sua trajetória e que elas não entendiam como violência até aquele momento; o silenciamento, que é muito profundo, os apelidos, as piadas, essas agressões que são vividas constantemente e elas só perceberam naquele momento. Foi muito profundo”, observa.

Já entre os meninos, suscitou a criação de um outro grupo de discussão, só deles.

“Chamou a atenção deles um aspecto que não fez muito sentido para as meninas: as relações inter-raciais da Maya Angelou. E eles começaram a debater isso: o direito do homem negro ser amado. E começaram a falar de ausência paterna, de educação sexual…”, relata Rosalia.

Ela conta que por conta disso foi feito um trabalho à parte, coordenado pelo professor de Filosofia, Leandro, em que foi exibido um documentário chamado ‘O silêncio dos homens’”.

No encontro sobre Conceição Evaristo, foi apresentado o conto Maria. “Esse dia foi muito visceral, porque as meninas conseguiam ser ver na Maria, viam as mães delas como Maria e muitas outras se reconhecendo naquele espaço. E contaram coisas, como a saudade de um avô que já morreu, alguma violência doméstica que elas sofreram, o medo e a dificuldade de permanecer na escola – e a gente sabe que pessoas pretas tendem mais a evadir”, narra Natalia.

“E foi muito bonito porque aí depois que elas viram que a autora era negra e que elas podiam falar das suas histórias porque elas importavam”, lembra.

Já na atividade relacionada à Maria Carolina de Jesus, o ponto de partida para discussão foi uma imagem da autora. “Propositalmente, pegamos uma imagem dela de lenço na cabeça, muitas falaram “ah, é a minha avó, é empregada doméstica’. E quando entenderam que Carolina era muito mais que aquela imagem, elas também quiseram escrever e daí a produção dos diários nesse encontro”, conta Natalia.

Transformar e ser transformada

Além das rodas de conversa que tinham as biografias das quatro autoras negras como disparadoras, foram realizadas produções textuais, como a redação de diários na atividade relacionada a Carolina, e artísticas, como sessões de fotos individuais e com a família, na roda sobre Aqualtune. A culminância do projeto se deu num vernissage no fim do ano, aberta ao público, em que todos os trabalhos foram expostos.

Fotos das alunas com imagem de Aqualtune

“A gente sempre trabalhou em sala de aula assim: utilizando música, poesia, trazendo história do bairro, fazíamos ensaios fotográficos anuais, conversávamos com as meninas após os ensaios. E esses outros trabalhos levaram inclusive à apresentação em congressos de outros países. Mas a gente não tinha estruturado para que outras pessoas acessassem e estimulassem outras pessoas a fazerem em seus espaços escolares”, afirma.

A “estruturação” a que Rosalia se refere-se foi a formulação do projeto de pesquisa para inscrição no Edital Pesquisadoras da Escola Pública, de 2018, promovido pela UniPeriferias com apoio do Instituto Unibanco. A proposta foi uma das selecionadas e alguns dos achados da pesquisa são narrados em artigo que integra o livro “Pesquisadoras da Educação na Escola Pública: desafios na produção de conhecimento a partir das periferias”, lançado em 2019.

No texto, um dos pontos que elas ressaltam é a necessidade de se promover uma educação afetiva para que ela seja efetiva. “Nossa mãe dizia: A gente não vai mudar uma escola, uma cabeça, um coração se não estiver dentro dele”, cita Rosália. E elas perceberam a efetividade do trabalho que estavam realizando ao presenciar mudanças no comportamento das e dos estudantes. “Olhar para esse aluno e entendê-lo como sujeito, como um ser que existe e pode ser transformado foi um dos grandes presentes da pesquisa”, considera.

“A gente percebeu um aluno, que era muito faltoso, 17 anos. No dia da sessão de fotos, quando ele se viu na foto, foi uma transformação imediata. Ele falou: nossa, eu sou bonito. E a partir daquele momento ele arrumou uma namorada, um trabalho, foi uma transformação interna tão grande que a gente não tem a dimensão. Até o corpo dele, no início curvado, foi se tornando mais seguro de si”, lembra Rosalia.

“A namorada desse menino que a Rosália comentou também se sentiu mais bonita, começou a trabalhar e passou a frequentar mais a escola. Ela falava que a gente a tratava com muito carinho. E ela tinha um histórico de ser despejada, como Carolina de Jesus, de muitas famílias. E agora ela atingiu a maioridade e toma conta de si mesma”, complementa Natalia.

“Então, também foi esse espaço de acolhimento e de afeto. A gente entende que a gente transforma é transformada ao mesmo tempo”, pensa.